Final feliz

Uma homenagem aos leitores que reivindicam um happy end nas minhas crônicas.

Nada me deixava mais feliz na infância do que visitar minha tia-avó Docelina. Ela me recebia com um par de olhos azulados, encurralados por rugas enfileiradas como legiões romanas, e com eles fazia uma silenciosa tomografia no meu corpo magro de ruim. Gostava dela porque não me apalpava nem me sacudia nem me beliscava nem me sufocava como as outras tias. Só aquele olhar. Depois desta inspeção meticulosa, grunhia algo e também com o olhar me autorizava a entrar em sua casa sempre arejada, com um cheiro de terra molhada em lonjuras. Isso era outra coisa de que eu gostava. Sua casa não cheirava a perfume doce nem a roupa que secava abafada nem a banha rançosa. O vento fazia voltas pelas janelas abertas, trazendo odores de coisas vivas.

Eu ficava lá na sua sala de costura, enquanto ela alinhavava uma colcha de retalhos coloridos. Eu, ela e seu gato sem idade. Um tipo meio antipático, rajado de cinza e com uns olhos amarelos. Nunca o vi ronronando pelas pernas da minha tia nem a vi afagando a sua cabeça. Mas eram ligadíssimos, dividindo o mesmo oxigênio, mas sem descuidar-se de uma distância regulamentar. Eu me jogava numa de suas almofadas de retalhos e ficava lá divagando, enquanto seus dedos dançavam um balé de linhas e agulhas e o gato cochilava de olhos abertos. Raramente trocávamos uma ou outra palavra, só mesmo se fosse imprescindível. Palavras nos constrangiam.

Tia Docelina e eu (e poderia jurar que também o gato) nos entendíamos por olhares e uma meia dúzia de sons que saíam de sua garganta e que me soavam perfeitamente inteligíveis. Ao contrário de todas as pessoas do meu mundo, ela não se importava se eu passava o dia inteiro imóvel no tapete da sala olhando para o nada. Na sua casa eu estava encaixada como o dedal no seu dedo médio.

Quando a manhã já ia pelo meio, ela levantava os olhos de seus retalhos, largava a colcha sobre o sofá e erguia-se como se tivesse pernas de 20 anos. O gato emitia uma aprovação rouca e ela dirigia-se à cozinha. Eu interrompia uma das histórias que se desenrolavam na minha cabeça com mais realismo que a vida e, enquanto nos confins do meu cérebro um cavaleiro medieval suspendia seu ataque a uma princesa alienígena com uma armadura de oito seios, meus músculos todos se tensionavam pela expectativa. Era minha parte favorita do dia.

Tia Docelina abria o armário de palhinha para pegar uma lata enfeitada com uma paisagem de montanha nevada que recebera de uma parenta da Suíça. Destampava-a com requintes de cuidado e tirava lá de dentro pedaços de pão dormido. Esparramava-os com precisão igualitária pelo parapeito da janela emoldurada por cortinas de retalhos. Não levava mais do que alguns segundos. Eles vinham de todos os cantos, como se vivessem para este momento. Coloridos, em preto e branco, pardos, miúdos, gordos, havia ali uma variedade suficiente para alegrar um daqueles gringos de pele avermelhada, observadores de pássaros que costumam perambular pelo que restou das matas do Brasil. Tia Docelina os perscrutava com genuína satisfação apertando seus olhinhos azuis. De dentro da lata ia sacando bocados de pão e repondo o banquete.

Não podia existir imagem mais bucólica. Tia Docelina em seu vestido de retalhos coloridos na janela emoldurada por cortinas coloridas dando bocados de pão a dezenas de passarinhos coloridos.
Eu e o gato, daltônicos naquele quadro, espiávamos a cena hipnotizados de gozo.

Quando a maioria já havia se refestelado de pão, Tia Docelina rosqueava sem pressa a tampa na lata, devolvia-a ao armário com seu espírito virginiano e em seguida sacava a espingarda espalha- chumbo do gancho atrás da porta. Com uma mira de Clint Eastwood, acertava um punhado, enquanto os outros revoavam em magoada traição, só para retornar no dia seguinte. Pelo menos uma meia dúzia tombava num momento de máxima felicidade, ao final de lauto repasto, sem tempo para adivinhar a morte. Tão inocentes que a carne nem endurecia pela descarga de adrenalina que estraga o sabor de tantos bois. Tia Docelina os recolhia com sereno respeito, depenava-os e limpava-os com maestria de chef francês. Quarenta minutos depois, estávamos eu, ela e o gato comendo polenta com passarinhada.

Era um final feliz para ela, para o gato e para mim. Talvez não fosse para os passarinhos, mas não dá para ter tudo na vida.