A bunda

Tinha uns 11 anos quando descobriu que a bunda era algo além do lugar por onde saía o cocô ou um mero aparador de palmadas. O homem velho, devia ter uns bons 30 anos, a espalmou inteira quando espiava uma vitrine no caminho da escola. Até doeu. Gostoooosa, ele disse. E ela sentiu uma mistura de repulsa e desejo. E saiu correndo de ambos os sentimentos. Com os meses, até os tios olhavam disfarçadamente para a sua bunda. E os primos e os colegas de escola e talvez o pai, mas ela não queria pensar nisso. Se trancava no quarto e se olhava no espelho. Tentava alcançar a bunda que os outros apalpavam com olhos úmidos.

Aos 12 anos foi feliz com a bunda. Em sua ingenuidade de menina achava que fazia parte dela e eram para ela os assobios nas ruas, a sedução dos homens e a inveja das mulheres. Aos 13 a mãe ficava brava porque as calças não duravam muito. Num mês serviam, no seguinte eram rasgadas pela bunda que crescia em círculos. Aos 15 só usava saias porque duravam mais. Aos 17 os meninos todos queriam namorar com ela, mas só prestavam atenção na bunda. Só apalpavam a bunda, só queriam a bunda, só se dedicavam à bunda. Nenhum pensamento para ela nem para os pensamentos dela. Ela era a mulher acoplada à bunda, descobriu. Aos 18 começou a odiar a bunda e cometeu o primeiro atentado contra ela que não era mais ela. Enfiou uma faca de churrasco na nádega direita. A bunda sangrou um pouco, mas logo cicatrizou e mais bunda veio e apagou a marca. A bunda era invencível.

Aos 20 anos já precisava de duas cadeiras para a bunda. E amigos e familiares se referiam à bunda e a ela como seres diferentes. Nesta época acreditava que a bunda queria se livrar dela e quase não dormia à noite, temerosa de que a bunda a expulsasse de si. Quando finalmente dormia, imediatamente o medo a acordava. Se no passado tivera dúvidas se a bunda era ela, agora não tinha mais. O olhar externo a esquartejara da bunda e o que antes havia sido sua carne agora crescia como um bicho à espreita. Emagrecia pelo terror que a condenava à vigília e à falta de apetite. Diante de sua pequenez, a bunda se tornava maior, mais forte e mais irredutível.

Aos 22 anos ela se casou com um homem que jurava amá-la para além da bunda. Aceitara seu assédio porque ele havia sido o primeiro a descobrir que ela tinha olhos cor de mel. E uma covinha na bochecha direita quando sorria. E uma pinta logo abaixo da axila esquerda. Descobriu no altar que era tudo fingimento quando ele enfiou a aliança e o dedo no lugar errado e ela precisou sofrer uma cirurgia de emergência, arruinando a lua de mel. Quando deixou o hospital não se olhava mais no espelho porque também ela agora só enxergava a bunda.

Aos 25 anos sentou-se em três cadeiras de uma clínica de cirurgia plástica e implorou ao cirurgião que arrancasse 90% daquela coisa. Ou a coisa inteira, ela até preferia. Nessa época ela ouvia vozes que diziam que a bunda a engoliria viva. Ou morta. Tinha deixado de tomar banho e vagava pela casa enrolada num lençol encardido. O cirurgião cobrou uma fortuna, mas na hora da cirurgia não conseguiu. Aos prantos a pediu em casamento. Ela saiu batendo a porta, meio grogue da anestesia, e deu queixa dele no PROCON.

Aos 29 anos quase não conseguia andar porque parte das pernas tinha virado bunda. A família já perdia objetos dentro das crateras de celulite e toda vez que algo sumia ela era vasculhada sem cerimônia. Sua vida agora era espacialmente limitada e a única proposta de trabalho que recebera tinha sido para se tornar atração de um cirquinho mixuruca. Ainda era desejada pelos homens, mas já deixava que apalpassem a bunda e se enfiassem nela como se não lhe dissesse respeito. Tinha se desconectado. Não sabia mais da bunda nem dela, abdicara do corpo e do medo. Sem limites definidos, esbarrava nos móveis e causava enormes prejuízos materiais à família.

Aos 32 anos tomou 32 comprimidos para dormir, um para cada desgraçado ano. Sentiu uma comichão na bunda 20 minutos depois. Num lampejo de assustada lucidez percebeu que a vida toda havia sido um monumental engano. Era tarde para tudo, menos para morrer inteira.