Seu J, o único homem que faz de mim o que quer

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

— Quanto tempo vai durar? — perguntei.

— Um mês — afirmou Seu J, categórico como se expressasse uma verdade tão óbvia quanto absoluta.

— Mas eu quero saber o prazo real, não aquele prazo que depois vira o dobro. Ou o triplo! Eu trabalho bem com a realidade, então preciso que o senhor me diga de verdade quanto tempo vai durar, para que eu possa me programar.

— Um mês dá tranquilo — e explicitou o cronograma como se recitasse uma Ave Maria.

— Vamos precisar sair do quarto?

— Não, imagina, não precisa. Pode continuar a vida normal.

E assim começou a obra do banheiro. No primeiro dia, a banheira aterrissou sobre a cama, de onde nunca mais decolou. No segundo, ele e os ajudantes já deixavam as roupas de trabalho penduradas no cabide. Ao final da primeira semana, não havia nenhuma camiseta, calça ou vestido de dentro do armário que não estivesse coberto por uma larga camada de pó. Para que eu não entrasse muito para espiar o andamento da obra, passaram a trancar-se à chave por dentro.

— Por que estão trancados? — perguntava eu.

— Para que a porta não abra com o vento — dizia-me ele, sorriso de orelha a orelha.

— Ah tá.

Na segunda semana, descobri que Seu J só trabalhava de terça a quinta. Perguntei a razão, e a explicação foi muito racional:

— Na segunda tem rodízio. Não teria cabimento eu vir lá de Francisco Morato depois das dez e ter de sair um tempão antes das cinco.

— Mas o senhor nunca chega antes das 11h…. E sempre vai embora antes das cinco.

— Então, pra você ver como o trânsito é ruim. Imagina com rodízio…

— E na sexta, por que não?

— Não gosto de trabalhar na sexta, nunca gostei. Por isso não sirvo pra ser empregado.

Rendi-me à lógica esmagadora.

Ao final do prazo, perguntei:

— Mas quanto tempo vai demorar ainda?

— A senhora não pode ser impaciente. Cada obra tem o tempo dela. A gente precisa deixar secar cada coisa.

— Mas eu perguntei ao senhor quanto tempo levava…

— Pois não é que eu também fiquei surpreso? Choveu muito, por isso demorou a secar.

— Mas faz mais de mês que não chove em São Paulo, os reservatórios de água estão baixando, a qualidade do ar está péssima…

— Sério? Rapaz, não ouvi nada sobre isso!

Quando completou mês e meio de obra, um estouro anunciou o curto circuito. A obra era de encanamento.

— O que aconteceu? — perguntei pela manhã.

— Pois não é que não sei? Eita trem mais estranho…

— Acho que deve ter sido naquela hora que o senhor puxou eletricidade direto da caixa para aquela máquina barulhenta, aquela que provocou um protesto do condomínio.

— Imagina, não tem nada a ver. Aquela máquina é perfeitamente normal, dá para puxar tranquilo a energia da caixa. Talvez tenha sido quando a senhora usou o secador de cabelo.

— Mas faz sete anos, desde que eu vim morar aqui, que eu uso o secador de cabelo. Mas a sua máquina foi a primeira vez.

— Ah, mas é assim mesmo. Sete anos já é bastante tempo, uma hora a coisa dá problema.

— Não é melhor chamar um eletricista?

— Eu sou eletricista de formação. Faço encanamento porque as pessoas pedem, mas o que eu entendo mesmo é de eletricidade.

— Fiquei muito mais tranquila agora.

— Que bom, fico feliz.

Ele passou o dia mexendo aqui e ali, tirando lâmpada, testando fio. De vez em quando pegava um pedaço de bolo de chocolate, já bem de casa, e ficava matutando, o olhar preso no horizonte, embora não exista isso em São Paulo. No meio da tarde reclamou da qualidade da bergamota (mexerica, para paulistas; tangerina, para cariocas). Expliquei que não tinha achado a que ele gostava, mas que procuraria mais. A noite chegou, e a casa começou a ficar escura.

— O senhor já conseguiu descobrir o que aconteceu? – perguntei de novo.

— Não tenho a menor ideia.

— Mas o senhor não é eletricista?

— Sou, mas tem coisa que acontece e a gente não sabe explicar. A senhora não lembra do ET de Varginha?

Dois meses no calendário. Chamei-o para uma D.R. na mesa da cozinha.

— Seu J, a gente precisa discutir a relação.

— Claro — disse ele. Posso pegar uma banana?

— Sim, sim. Mas, seu J, é o seguinte. Eu moro aqui e também trabalho aqui. Tudo o que eu faço é aqui dentro. E, o senhor sabe, eu ganho a vida escrevendo. Sem contar que estou com rinite alérgica há dois meses! Eu gosto do senhor, gosto do C e do T, sei que são gente boa, fiz até feijão pra eles, o senhor lembra?

— Ah, eles gostaram muito. Quando não tiver mais inspiração pra escrever, a senhora pode começar a cozinhar pra fora.

— Boa ideia, seu J, mas o que eu quero dizer ao senhor é que está muito difícil de escrever e todo o resto com a casa em obra há dois meses! Eu não tenho quarto, eu não tenho escritório, eu não tenho roupa limpa, às vezes eu não tenho nem luz! O senhor precisa botar um fim nisso. Não dá mais pra continuarmos assim. Seu J, eu não aguento mais! — terminei o ponto de exclamação num meio soluço patético.

— Você sabe que eu também escrevo?

— Escreve?

— Já tenho mais de 400 poesias.

— Verdade?

— Eu mexia com arte lá na Paraíba. Aí vim pra São Paulo, casei, vieram os filhos e tive de fazer obra. Mas hoje mesmo me inspirei e escrevi mais uma.

— Que bacana, seu J.

— E já fui Cristo, também, na Paixão de Cristo.

— Nossa, seu J, mas que interessante, um Cristo aqui na minha casa. Um privilégio, mesmo.

— Quer ouvir minha poesia preferida?

— Quero, claro.

E declamou “Versos Íntimos”, de Augusto dos Anjos.

— Acostuma-te à lama que te espera! O homem que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera…

E sacudia a banana pela metade, quase em êxtase na minha cozinha amarela.

Senti-me vil. Que importância tinha uma reles obra diante dessa cena? Como pude eu me apequenar tanto ao comezinho da vida a ponto de choramingar por toneladas de pó, um banheiro perdido, eletricidade?!

Juntei-me a ele, alteando a voz e subindo numa das cadeira ao redor da mesa.

— Toma um fósforo, acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro.

A mão que afaga é a mesma que apedreja…

No dia seguinte, Seu J não apareceu para trabalhar. Ligou por volta de cinco da tarde.

—Tive um problema… Tô fazendo uma outra obra na Paulista pra uma mulher bem nervosa e ela me obrigou a ficar aqui. Mas, amanhã, oito da matina, eu tô aí….

A manhã chegou. São 10h neste momento. Toca o telefone. Eu sei que é ele. Eu sei!

Pelo menos aqui eu posso botar um ponto final.