O funk do réveillon

Ficou virando a taça de espumante entre as mãos. Tinham acabado de cear. Na tela de TV, Roberto Carlos fechava os olhos na profunda emoção de todos os réveillons. Mas não havia som, a tecla do controle remoto no mudo. Era só uma imagem familiar de algo que mudava para nunca mudar. No fundo ninguém queria que mudasse nada, só desejava ter forças para encenar por mais um ano um amor que de tão encenado havia se tornado verdade. Estamos juntos. Contra todas as probabilidades.

Era o que a cena parecia dizer. Por um segundo todos os ruídos familiares cessaram na mente dele. O tilintar dos copos, o som metálico dos talheres, as vozes um tom na direção da euforia obrigatória.

Tirou os olhos do líquido dourado quando sentiu suas pálpebras umedecerem-se de ternura por aquele desespero singelo que os mantinha ali, simulando uma felicidade que sabiam frágil. Beijou a cabecinha do filho, a testa arredondada de criança. Ele o havia condenado à continuidade, ao mundo dos primeiros do ano, à vida de datas encadeadas na tentativa de repetir os rituais para escapar da morte. Viu o pai cabecear, tonto de sono. Cabeceando na cabeceira da mesa, um lugar que há algum tempo já o pai sabia ocupar só por concessão.

A cada vez que o pai dormia, agora, parecia morto. Numa manhã ele mesmo havia acordado antes de seu corpo e percebera que começava a ter no sono aquela expressão dos mortos. Também ele começara a morrer à luz do dia. Não eram mais apenas as suas células, os seus neurônios. Era o início daquela expressão que via agora no sono do pai, o princípio da rigidez. A vida se indo, sem alarde. Sabia que não era pelo ano que começava que estavam ali, mas para tentar se enganar que a vida não terminava.

Às vezes achava que o pai quase não se mexia mais por medo que o movimento o denunciasse à moira que tecia o fio da sua vida. Se ficasse bem quieto, quem sabe ela não o notasse e ele estaria ali no próximo réveillon, cabeceando no prato de lentilhas. Como será, ele pensou, ter a consciência de que há uma probabilidade grande de não estar mais ali no ano que vem? Amou mais aquela família reunida com tanta delicadeza uma vez por ano.

Então veio o som. Ele chegou como dor, ao ver o pai abrir os olhos com o corpo todo contraído de susto. Demorou a compreender o que era aquilo. As palavras chegaram como hieróglifos antigos, de uma língua desconhecida.
“Bota na bundinha, bem no meio da bundinha.”

Finalmente compreendeu. Ele não queria, mas entendia aquela língua. Era a língua dele também. Abriu a porta da casa e espiou. Lá estavam eles. Os vizinhos da casa de praia. O capô do carro erguido e aquelas caixas de som enormes ecoando um funk em que os homens enfiavam coisas nas mulheres. E as mulheres tinham coisas enfiadas nelas. E toda a praia precisava ouvir que eles tinham um carro potente com um som potente em que alguém berrava que era potente ao enfiar seu pinto em orifícios que sempre foram usados para este fim sem que ninguém tivesse que alardear coisa alguma. E agora a impotência era tanta que era preciso berrar.

Eles gritavam com suas barrigas balançando, e as mulheres com suas barrigas que também balançavam gritavam, e as crianças deles riam um riso nervoso, e pareciam todos acreditar que estavam muito felizes gritando e ouvindo coisas sendo metidas e enfiadas.

Quando tirou os olhos de fora para voltá-los para dentro soube que estava tudo arruinado. O pai acordara e tinha medo. Seu filho o encarava numa expectativa assustada. Sua mulher esboçava aquela risadinha nervosa que era seu cacoete quando não sabia o que fazer. Seus irmãos e irmãs, os cunhados, a sogra tinham olhos que vagavam pelo quadrilátero da sala. Nenhum deles sabia como lidar com a violência que rompera a camada de gelo fino que cobria o equilíbrio de suas vidas.

Acabara. Caminhou lentamente como um sonâmbulo até a cerca que dividia o terreno entre as duas casas. Por favor, ele disse, daria para baixar o volume? Os homens que balançavam sua barriga e as mulheres que balançavam a sua barriga riram. É réveillon, estamos comemorando, disseram. Você não tem alegria, cara, não sabe se divertir?

E as crianças que riam, excitadas, riram mais. Ele voltou como um sonâmbulo humilhado. Dentro de casa todos fingiam que nada tinha acontecido ou estava acontecendo. Ele tentou tomar um gole de espumante. Mas não pôde ao ver os olhos estalados do pai.

Seus passos agora não eram mais de um sonâmbulo. Abriu a parte superior do armário do quarto e pegou a pistola que havia comprado na primeira vez em que ladrões limparam a casa. Estava carregada. Ninguém tentou impedi-lo. Apenas a mulher o agarrou pelo cotovelo, mas como um reflexo de suas obrigações de esposa sensata. Um gesto para ser ignorado.

Caminhou diretamente para o terreno do vizinho e, empunhando a pistola, ordenou que aumentassem o volume. As barrigas eram ainda mais molengas de perto, pensou. Mandou que entrassem na casa. Ordenou que repetissem o funk. E repetissem. Dentro dele finalmente um profundo silêncio.

Atrás dele, sua família o seguia com os olhos brilhantes. Viu então que um cunhado empunhava um taco de baseball. Desde quando ele jogava baseball, lembra de ter pensado. Seu próprio filho de cabeça arredondada de criança tinha algo na mão.

Ele nunca soube quem começou. Talvez ele mesmo. Quando percebeu o que estava acontecendo tinha as mãos cheias de sangue. E as havaianas nos seus pés chapinhavam em sangue. E ele continuava enfiando, enfiando. Bem no meio da bundinha. E daquele ângulo as barrigas dos homens e das mulheres balançavam ainda mais.
Ao virar a cabeça para se proteger de um jato de sangue que entrava pelo seu olho esquerdo, viu o pai. Enfiando e enfiando. Agora o pai não parecia mais um morto.

Aquele seria um ano bom.