Socorro! Tem alguém aí?

Desventuras no admirável mundo novo

Não conheço uma única pessoa que tenha pronunciado alguma vez na vida: “Oba, o telemarketing da empresa tal me ligou oferecendo uma oportunidade maravilhosa!”. Ninguém.

Talvez exista, mas nunca testemunhei. Quase todos que conheço têm estratégias para não ser alcançado por ações desse tipo. E a maioria, quando capturado, é grosseiro com a voz do outro lado. Toda vez que um operador me liga, tento conter minha irritação e lembrar que há um ser humano ali, em algum lugar, ainda que seja num call center em Bangladesh. Esta pessoa possivelmente gostaria de estar fazendo outra coisa, quase certamente ganha muito mal e, mesmo que tenha sido treinada para agir como um robô, deve sofrer com as grosserias como qualquer humano.

Às vezes não consigo fazer esse exercício mental a tempo, sou ríspida e, assim que desligo, fico arrasada. Mas, em geral, consigo. E, já que fui pega de surpresa e não costumo desligar o telefone na cara de ninguém, tento conversar. Mas minha tentativa esbarra na impossibilidade de meu interlocutor entabular qualquer diálogo cujas perguntas e respostas não estejam no manual. Afinal, “para sua segurança, esta ligação está sendo gravada”.

Se, ao contrário, você precisa falar com alguém para reclamar de um serviço ou produto que não funciona ou funciona mal, a dificuldade é a mesma. Primeiro que, para chegar a um alguém, você aperta vários números antes. Você só vai falar “com um de nossos atendentes” se nenhuma das gravações anteriores conseguir resolver seu caso. Tudo desestimula você a isso. Os muitos números do menu principal levam a infindáveis menus secundários. Quando você chega àquele que o leva ao contato com alguém, o alguém demora uma eternidade para atender a ligação. E, quando atende, é como se você falasse com uma máquina.

Por tudo isso, fico pensando: como isso dá certo? De um jeito ou outro, deve funcionar. E ser lucrativo. Já que emprega milhares de jovens pobres que mal estrearam na vida e são treinados a anular sua singularidade para decorar um programa robótico de saudações, perguntas e respostas. Ainda vamos precisar responder pelo aniquilamento de uma geração nesses serviços de desumanização.

O mundo bem estranho em que vivemos nos coloca esta questão ética: como lidar no cotidiano com humanos que são treinados para se parecer com máquinas? Como é ser um humano que, para atingir a perfeição profissional, precisa se tornar o mais parecido possível com uma máquina? E, em seguida, se tornar obsoleto?

Vivemos (ainda) uma fase de transição entre as relações pessoais e as impessoais. Quando nos acostumarmos por completo a sermos atendidos por máquinas humanas, ninguém vai precisar de gente nesse tipo de serviço. Gente, por mais barata que seja, ainda é mais cara que qualquer sistema robótico. E se não faz diferença…

Vivemos uma espécie de versão pós-moderna do Tempos Modernos de Charles Chaplin. Não mais meros apertadores de parafusos de uma engrenagem, mas os próprios parafusos.

A tendência é que tudo se torne ainda mais desencarnado. Vivi um dia no admirável mundo novo neste início de mês, às voltas com o formato mais inovador de companhia aérea. Uma que você não vê, não toca, não alcança. Mas confia sua vida a ela. É considerada um dos maiores “cases” de sucesso da história da aviação europeia.

Foi assustador.

Eu estava em Madri, por razões profissionais, e queria conhecer Londres. Amigos disseram: “Aproveita, é barato viajar de avião dentro da Europa”. Eu pensei: “hum, boa ideia”. Entrei na internet e, especialmente para a volta, achei uma passagem muito barata. Voltar de Londres a Madri, onde pegaria o vôo de retorno para São Paulo, custaria quase o mesmo que viajar de ônibus de São Paulo à minha cidade natal, no Rio Grande do Sul. É supostamente barato porque todo o contato, exceto o avião e a tripulação, é virtual. Eu acabava de embarcar no sistema low cost (custo baixo).

Na véspera de pegar o avião, a bordo dessa novíssima configuração empresarial, li as instruções que recebi por email. Eu deveria fazer o check-in pela internet. Se só pudesse fazer no aeroporto, pagaria 40 libras esterlinas (111 reais). Teria também de pagar pela bagagem, que não poderia passar dos 15 quilos. Se passasse, mais taxa extra.

Entre uma lembrancinha e outra para a família e meia dúzia de livros, eu precisaria despachar uma mala. Fiz as contas. Sim, ainda valia a pena. Entrei numa lan house, para resolver tudo isso com alguns cliques no computador. Nada. Havia três maneiras de fazer o check-in. Tentei todas elas. Em todas aparecia uma mensagem na tela. Em resumo, ela dizia: “Seus dados não foram encontrados”. Eu não existia no sistema, ao que parece, embora o desconto no meu cartão de crédito fosse bem real.

Procurei um telefone de contato. Havia dois. Um deles para prioridades. Se for prioritário, é mais caro. A chamada era tarifada em 1 libra por minuto. Entrei na cabine. Disquei. Tu-tu-tu. Nada. Nem mesmo uma gravação do tipo: “por favor, espere um minuto”. Depois de muitos tututus, desisti.

Mais tarde, tentei de novo. Tudo igual. O sistema não encontrava meus dados e o telefone não atendia. Eu não conseguia encontrar ninguém, nem mesmo uma voz, que me ajudasse a resolver o problema. Nesse momento, eu implorava pela voz impessoal do telemarketing. Nada. Eu estava entregue à virtualidade. Se o sistema online não funcionasse – como não funcionou – eu virava refém. Virei.

A única alternativa era perder o último dia em Londres e chegar bem mais cedo ao aeroporto para resolver tudo isso direto no balcão da companhia. Quando cheguei, procurei o nome da empresa. Não havia nenhum balcão. Só uma moça no check-in, o nome da companhia atrás. Expliquei o caso. Ela disse: “Sinto muito, não posso fazer nada. Eu aqui só faço o check-in”.

Me despachou para outro setor, responsável por cobrar os valores de check-in e bagagem. Expliquei tudo de novo. A moça afirmou: “Sinto muito, aqui só somos intermediários”. Eu insisti: “Mas eu não consigo fazer o check-in. Passei o dia de ontem inteiro tentando fazer o check-in”. Ela: “Ainda dá tempo de a senhora fazer o check-in pela internet”. Eu: “Mas eu já tentei mil vezes fazer o check-in pela internet”.

Ela devia ser nova no setor, porque exibiu reações humanas e fez o impensável: tentou ela mesma fazer o check-in no computador. Não conseguiu. Disse à colega: “Eu mesma não consegui fazer o check-in. O que a gente faz?”. A colega: “Nós somos apenas intermediários. Não temos nada a ver com isso. Se não fizer o check-in pela internet, tem de pagar”.

Constrangida, a moça pegou um pedaço de papel com o telefone da companhia aérea: “Liga para este número”. Eu: “Mas ninguém atende!”. Neste momento, o colega da moça gritou. Outra reação humana. Ele estava furioso porque a colega tinha saído do manual e uma fila atenta se formava atrás de mim. Quando disse a ele que não havia necessidade de ser rude, ele voltou a se tornar um robô. Do gênero “robô intermediário”.

Voltei para a moça do check-in, só para constatar que ela também era intermediária. “Sinto muito, mas não posso fazer nada”. Ok, mas eu quero falar com alguém que possa encontrar uma solução! Não tem ninguém neste aeroporto inteiro que responda pela companhia? A moça voltou ao modo hibernação.

Eu havia deparado dezenas de vezes com esse comportamento pelos telemarketings da vida. Mas nunca tinha conversado com robôs humanos ao vivo. É chocante perceber que a pessoa olha para você com um olhar vazio. É a alienação do trabalho levada ao seu apogeu. Não há ninguém ali.

Ela só sabe repetir frases e não tem respostas que não estejam armazenadas no seu chip. Não tem autonomia para nada. Quando algo fora do roteiro acontece, ela fica repetindo a sua alienação como se esta fosse uma resposta. E parece não perceber o que faz consigo mesma. “Sinto muito, eu não posso fazer nada. Sinto muito, eu só sou uma intermediária. Sinto muito, eu não estou autorizada”. Sinto muito, eu não pertenço à companhia. Não pertence sequer a si mesma.

Todo o raciocínio humano, a capacidade de criar alternativas e resolver questões, todo o capital intelectual e simbólico que nos tornou o que somos de melhor é anulado. Nesse lugar de máquina humana, a pessoa competente é aquela que não faz nenhuma diferença. Será que, quando ela for definitivamente anulada, ou seja, substituída por uma máquina que não seja de carne e osso, mas de silício, vai se espantar?

É o único emprego que ela conseguiu, só está fazendo o que lhe mandaram fazer, não é responsável pelo modo como as coisas funcionam, alguém poderia ponderar. É verdade. Mas arrancar de uma pessoa a capacidade de resistir e criar alternativas para sua vida, ainda que seja difícil, é anulá-la por completo em tudo que é humano. É destituí-la de qualquer potência, é fazer a mesma sacanagem.

Se realizamos um trabalho pelo qual não nos responsabilizamos, aceitamos que nos reduzam a parafusos. E isso vale para qualquer trabalho. Talvez a grande diferença entre um humano e uma máquina seja a capacidade de fazer escolhas. Quando alguém abdica deste bem imaterial – ou reduz suas escolhas a qual marca de sopa industrializada vai comprar para o jantar – está abdicando de ser.

Segui minha desventura pela companhia virtual. Procurei um computador, tentei tudo de novo. Nada. Voltei ao check-in. Outra moça. Diante do meu relato, ela afirmou (adivinha!): “Sinto muito, não posso fazer nada”. Decidi pesar minha mala. Descobri que ultrapassava os 15 quilos. Como não pude pagar pela internet, fui informada de que despachar uma mala me custaria o equivalente a 35 libras (97 reais). Para cada quilo que passasse dos 15, cobrariam 20 libras (55 reais). Por sorte, eu não tinha uma segunda mala. Do contrário, teria de pagar mais 70 libras (194 reais): a segunda é o dobro do preço.

Pagar este valor pela bagagem me parecia absurdo, mesmo que eu tivesse conseguido pagar a taxa mais baixa, pela internet. Mas sobre isso eu havia perdido o direito de reclamar quando dei um clique com o mouse do computador. Quem mandou não ler as letras miúdas? Fiquei pensando em todos os “I accept” (eu aceito) que clicamos na internet, a cada programa baixado ou a cada compra consumada. O que será que eu já aceitei ou com quais absurdos concordei somente neste ano?

“Declaro que estou de ciente que o produto é cancerígeno e a empresa X não tem nenhuma responsabilidade sobre o melanoma que eventualmente desenvolverei no futuro”. Ou: “Declaro que estou ciente de que ao final do programa vou ser esquartejada e ter meus órgãos comercializados sem que meus familiares tenham qualquer direito a uma parte dos lucros obtidos com a transação”. Ou: “Declaro que tenho um desvio patológico de conduta e sou incapaz de gerir meus bens, que devem portanto ser transferidos para a empresa tal”.

Medo.

Paguei. Como eu continuava reclamando, a “intermediária” disse algo que, imagino, não estivesse no manual: “When you choose this company, you sign your life away”. O sentido, em português claro, é: “Quando você escolhe esta companhia, você vende sua alma”. Eu tinha assinado uma versão contemporânea de pacto com o diabo. E era assim que eu me sentia. A empresa era descarnada. Eu tentava alcançá-la, mas só agarrava fumaça.

Tive uma profunda sensação de irrealidade. E se o avião não existisse? E se não tivesse piloto? E se a manutenção da aeronave também fosse virtual? Eu não queria apertar cinto nenhum!

Passou. Apresentei no check-in o recibo da minha impotência. A fila tinha mais de cem pessoas. Quando chegou minha vez, o moço do check-in (outro intermediário) achou minha reserva no computador no primeiro clique. Sim, eu estava lá. Em algum lugar daquele mundo volátil havia um lugar para mim no avião.

Sentei-me aniquilada na sala de embarque. O que eu poderia fazer diante dessa criatura imaterial, mas que tinha ganhos bem concretos? A companhia não tem o menor interesse em resolver as panes eventuais de sistema em casos como o meu. Nem sequer me vêem como uma pessoa. Eu não sou um ser humano com nome, história, desejos. Sou apenas um número de cartão de crédito.

O cálculo é pragmático. Contratar funcionários capazes de resolver problemas numa estrutura própria é muito mais caro que acertar com uma empresa terceirizada, que faz serviços para ela e outras dez, e que se limita a faturar taxas e seguir o manual padrão de perguntas e respostas. Sem contar que qualquer prejuízo não será da companhia, mas do passageiro. Se X pessoas deixarem de viajar porque foram lesadas e não puderam sequer reclamar, tanto faz. Sempre haverá gente precisando viajar barato. Na ponta da calculadora virtual: custa menos dinheiro perder um número X de clientes do que estabelecer um escritório próprio. Pronto. A escolha está feita. Se tudo é fumaça, alguém espera que exista ética?

A companhia trabalha assim porque é má? Não. É a lógica do mercado. E o mercado, dirão os gurus de plantão, não é bom nem mau. Estes são atributos humanos. A longo prazo, o número de descontentes poderia colocar a companhia em risco? Esta é a parte que o marketing tem a missão de resolver.

A ausência física, com todas as violações aos direitos básicos do consumidor que acarreta, é transformada em “diferencial”. O que era ônus, em termos de imagem, vira bônus. Transforma-se num valor. “Usamos a internet para que você possa viajar pelo mundo pagando menos. Nós estamos pensando em você, que antes não podia viajar e, graças a nós, agora pode.” No final desse raciocínio, você quase agradece.

Mas por que tem de pagar pela bagagem? Também há uma sacada de marketing logo ali. É preciso fazer com que você não se sinta apenas um cidadão de terceira classe, viajando barato numa companhia que não responde pelos seus atos e que cobra até pela mala que você carrega. A médio prazo isso poderia trazer prejuízos significativos. Afinal, não se pode esperar fidelidade de clientes sem autoestima.

De fato, você está ali porque não consegue pagar a passagem de uma empresa com reputação, escritórios estabelecidos, onde você é atendido por pessoas que o ajudam a resolver eventuais problemas e viaja numa aeronave com o mínimo de conforto. O que você não sabia é que, ao escolher este inovador sistema de voar, abriu mão dos direitos mais básicos do consumidor.

De novo, é preciso transformar isso em atributo. Em vez de cidadão de terceira classe, você tem de ser convencido que é um cidadão do mundo. Com a ajuda do marketing publicitário, você finalmente compreende que viajar por esta companhia não é apenas pegar um avião, é embarcar num estilo de vida, um jeito despojado de estar no mundo. Se você for um de nós, você sabe que a principal bagagem que carrega está no seu cérebro. Ou no seu coração, para os mais românticos. Portanto, viaje leve. Você não é pobre, você é cool.

Estava neste ponto do raciocínio quando chamaram para o embarque. Chequei se o avião tinha o nome da companhia. Tinha. Achei melhor não investigar se o piloto era “intermediário”. Não tinha assento marcado, então era só dar cotoveladas, correr, saltar alguns obstáculos e sentar onde conseguisse. Se você quiser ser um dos primeiros a embarcar, precisa pagar uma taxa a mais. Claro. Os bancos não reclinavam, para que coubessem mais poltronas. Desconforto? Ganância à custa da sua coluna vertebral? Não. Estilo, claro. Banco reclinável é coisa de gente velha ou fora de forma.

Esta mesma companhia, em mais um lance inovador, vem estudando a implantação de um modelo em que os passageiros viajariam em pé, agarrados a barras de ferro e presos por cintos de segurança. Parece piada, mas não é. O termo usado para anunciar a possível “nova classe” ao público é primoroso: “sentados na vertical”. Numa enquete virtual, a opção foi aprovada por 60% dos participantes (!). A mesma companhia já estudou cobrar pelo uso do banheiro.

No início do vôo, recebi – de graça! – uma revista com os produtos em oferta, com a comodidade de poder comprar ali mesmo. Mais uma prova de que a companhia continuava pensando no meu bem-estar. Vi então a foto do big boss no editorial. Quase duvidei que existisse. Era a primeira imagem humana que eu tinha. Mesmo se fosse falsa, parecia uma pessoa, o que não deixava de ser um upgrade.

Estudei com atenção. A foto vendia o conceito. Nada de terno e gravata ou ambiente corporativo. Nosso “fellow” era um homem com o sorriso confiante do jovem empreendedor arrojado, exibia um bronzeado de surfista e parecia se divertir muito enquanto trabalhava e revolucionava o mundo com a ousadia de suas ideias. Afinal, não é qualquer feito. Ele havia inventado o primeiro pau-de-arara com asas da história da aviação.

Continuei lendo. Descobri que eu era muito importante para eles e que todos os clientes eram tratados como VIPs – very important persons. Os comissários de bordo eram todos jovens, descolados. Cantaram parabéns para um passageiro de aniversário. Xavecaram as meninas que viajavam sozinhas. Passaram o vôo inteirinho tentando vender produtos variados, na maior empolgação, como se fosse um programa de auditório. Parei de escutar quando anunciaram um cigarro que não fazia fumaça nem precisava acender, mas que podia me dar a dose de nicotina necessária para viver, ali mesmo no avião.

Os passageiros aplaudiam. Pareciam muito felizes viajando no desconforto. Porque, afinal, ao contrário de mim, eles sabiam que não era uma simples viagem. Estavam compartilhando e propagando um estilo de vida, um jeito despojado de voar. Tinham, visivelmente, uma sensação de pertencimento a uma tribo privilegiada (?!) de cidadãos do mundo.

Eu queria de verdade que o admirável mundo novo parasse para eu descer e embarcar no velho. Mas, pelo menos naquele momento, a sensação de estar no ar era bem real.

(Publicado na Revista Época em 10/05/2010)