Lago interior

Você precisa conectar-se com seu lago interior, disse o mestre.

Ela fechou os olhos. Mas os pensamentos entravam e saíam pelas orelhas. Como era possível manter tanto lixo no cérebro? Tanto pensamento comezinho. Contas atrasadas, acontecimentos desinteressantes, irritações medíocres. Que vida era aquela em que a contemplação era obstruída por um esgoto cerebral no qual pensamentos imperfeitos boiavam como cocô?

Desde pequena ela ambicionava uma alma larga, um coração indomável. Queria dentro dela o Grand Canyon. Ou pelo menos o Itaimbezinho.

Contemple seu lago interior, disse o mestre. Respire. Ar que entra, ar que sai.

Ela respirava. E zum, por que o porteiro do prédio não a havia cumprimentado? Será que era porque pagava aluguel? Ar que entra, ar que sai. Quem o editor pensava que era para dizer que sua metáfora era lugar-comum? Ar que entra, ar que sai. Por que ele não tinha ligado? Ela servia para ser comida, mas não para namorar? Ar que entra, ar que sai. Será que tinha feito o pedido da Natura naquele mês? Ar que entra, ar que sai. O brócolis orgânico estava murcho, precisava reclamar com o fornecedor…

Você precisa silenciar a mente, disse o mestre. Concentre-se apenas no ínfimo pedaço de pele entre o seu nariz e a sua boca.

Ela tinha um lago interior, tinha certeza. Era a vida rotineira, a desgraça do cotidiano, que a apequenava. Tinha certeza de que emoções densas a habitavam, pensamentos complexos. Seu lago interior era profundo.

Desapegue-se, disse o mestre. Sem julgamentos. Sem aversão ou cobiça.

Ela respirava. Respirava. E respirava.

Lentamente, sentiu-se esvaziar. Quase flutuava. Uma mosca zumbia no seu nariz, mas ela permaneceu impávida. O cotidiano já não a alcançava.

Controlou a excitação para não perder o rumo, sempre para dentro.

Conectou-se.

Quando abriu os olhos, o mestre era uma meleca gigante de sangue, miolos e restos de ossos mastigados sobre o tatame.

No lago interior dela morava o monstro do Lago Ness.