Humanidade

A mesa era redonda. O círculo igualava a todos. Segundo as mais novas diretrizes do programa avançado de melhores empresas para trabalhar. Ou, como o diretor-geral preferia, best places to work in. A igualdade de posição fazia com que os funcionários ficassem mais criativos, propensos a se arriscar na reunião de trabalho. Segundo o mais recente best-seller coorporativo, be equal, earn more. O diretor-geral gostava de estar conectado às teorias avançadas de psicologia de gerenciamento. Que elas fossem inspiradas em uma lenda medieval, era detalhe. Segundo Arthur e a Távola Redonda, autor desconhecido.

Secretamente, ele se sentia um guerreiro feroz ao vestir sua armadura Armani diante do espelho do closet. Rrrrrrrrrrr rangia os dentes de novíssima porcelana. Só de tratamento estético dentário tinha dentro da boca um ano de salário de sua secretária trilíngue. Perfeito. Seu sorriso era perfeito. Como ele.

Cumprimentou os fellows, já sentados ao redor da mesa, com suas xícaras de café. Outra de suas mudanças. Ou melhor, inovações. Xícaras de verdade. Um exemplo de sustentabilidade ambiental. E sem gasto, já que as xícaras deveriam ser trazidas de casa pelo funcionário, personalizadas. Uma concessão à individualidade. Um passo adiante na busca do melhor ambiente coorporativo.

A secretária correra na frente para instalar seu capuccino fumegante em seu lugar. A mesa era redonda, mas, ele não sabia por que, gostava de se sentar sempre no mesmo lugar. Nenhum problema. Os fellows entendiam, já que era um lugar igual a todos os outros, apenas que, por alguma razão subjetiva, ele preferisse a todos os outros. Sentou-se em sua cadeira. Ligeiramente mais alta que as outras, mas apenas porque ele tinha uma hérnia de disco na cervical, como explicou cúmplice na estréia da moderna távola redonda empresarial. Por coincidência, sua xícara era quase um palmo maior que as outras. Nenhuma referência à sua posição. Desde pequeno, ele gostava de tomar café em xícaras grandes, como sua mãe gostava de lembrar. Que ele não apreciasse nada pequeno era uma singularidade que os subordinados precisavam respeitar, como ele tolerava seus piercings e o péssimo gosto para gravatas.

Detalhes. Para aquela segunda-feira, ele havia preparado um lance de total genialidade. Planejara por vários dias. Pensava que poderia ele mesmo escrever um best-seller de gerenciamento de pessoas depois daquele momento. Um divisor de águas na psicologia coorporativa. Nenhum outro diretor-geral jamais ousaria tanto. Soltaria uma bomba de altíssimo Q.I. bem no meio da mesa.
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As segundas-feiras eram o pior dia da sua vida. Não porque eram o pior dia para todo mundo. Mas porque eram piores para ele que para todo mundo. Desde que aquela mesa redonda aterrissou no meio da sala de reuniões, ele não conseguia dormir de domingo para segunda. Antes, podia ser esquecido numa quina. Agora, parecia que havia um neon em seu terno cinza-chumbo. Sentia-se sempre no centro, exposto como uma cereja falsa.

A ideia de que o diretor-geral esperava um acréscimo brilhante de sua boca o aterrorizava. Não é que não fosse inteligente, apenas não suportava a pressão de ser obrigado a exibir sua perspicácia daquele ponto de vista redondo. E, o pior. Sabia que seu rosto pegaria fogo e ele gaguejaria. Sempre gaguejava quando esperavam algo dele. Desde pequeno era assim. Fosse para puxar um pai-nosso na igreja ou uma hola no estádio.

Naquela manhã, especialmente, um brilho estranho no olhar do diretor quando pegou a xícara o colocou em alerta máximo. Havia algo nele. Seu joelho operado depois de uma entrada violenta sofrida no futebol de sábado latejava. O que ele planejava? Será que faria alguma piada com sua gravata de elefantinhos? Ele a achava ridícula, mas sua mulher a comprara na loja de um dos expoentes da nova geração de estilistas e jurara que elefantes davam sorte na Índia. Não seriam vacas, ele ainda perguntou? Ela ficara em dúvida. Disse que também havia gravata com vacas. Ele se adiantou, numa agilidade impressionante para seus padrões, e garantiu que acabara de lembrar ter lido na The Economist que, sim, os elefantes davam sorte na Índia.

Como passaram o fim de semana, fellows?, começou o diretor. E, antes que alguém respondesse: Quem começa a reunião de hoje? O diretor já havia começado, mas alguém precisava demonstrar sua pró-atividade e lançar a primeira ideia reluzente diretamente no meio da mesa. O jovem promissor do piercing na sobrancelha, com dois MBAs em Harvard, abriu a boca, mas o chefe arreganhou seus dentes espantosamente brancos e quase berrou. Se vocês me permitirem, hoje começo eu.

Dava para fazer um bochecho com a quantidade de bile na sua boca. Algo estava bem errado naquela segunda-feira. Era fundamental para o script funcionar que um subordinado começasse. Estava no quinto parágrafo do segundo capítulo do livro — The meeting, The soul. O diretor ajeitou uma mecha do belo cabelo prateado e disparou, em sua voz de tenor italiano.

— Eu tenho uma dúvida.
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Sentiu o gerente de procedimentos escancarar os olhos. Pensando bem, o homenzinho estava com uma cor cinza. E uma gravata estranha. Seriam rinocerontes? Passou os olhos numa trajetória circular perfeita. Podia tocar a perplexidade de seus colaboradores. Eles pareciam ter suspendido a respiração. O gerente de tráfego coorporativo chegou a abrir a boca e imediatamente fechou. Sim, sim, dessa vez eles não se arriscariam.

Continuou. Vocês se acostumaram a me ver como uma fortaleza em meio a um oceano de tubarões. Ou talvez como um leão na selva. Por um minuto, divagou. Os leões habitavam as selvas ou as savanas? Não importa. Tinha mais imagens eloquentes na manga de sua camisa tecida em fio egípcio. Alexandre, O grande na conquista da Pérsia. Droga, este era pederasta, mais uma divagação. O que estava acontecendo com ele? Será que havia ficado em dúvida mesmo?

Enfim, vocês se habituaram a me ver como um poço de certezas… um oráculo! Mas é preciso que me enxerguem como um homem. Mais brilhante, rápido e poderoso que a maioria, é verdade, mas ainda assim um homem. E este homem se apresenta diante de vocês, de peito aberto, dizendo: eu tenho uma dúvida.
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Sentiu seus olhos lacrimejarem. Era isso mesmo? Ele, o homem do ano, segundo a revista Power&Money, estava confessando ter uma dúvida? A declaração estaria no próximo minuto no blog dos colunistas financeiros de maior prestígio. Quase podia ouvir o som das teclas dos blequibeuris e aifones. Traiam-no, os desgraçados. Os fellows atiravam-no às hienas do mercado. Ele tinha de fazer algo por aquele chefe que finalmente se igualava a mortais como ele. Desta vez, sim, se sentia um Lancelot.
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Seus olhos varreram a mesa em mais uma trajetória circular. Será que já estava na hora de desfazer o mal-estar de seus subordinados? Ria secretamente com sua cartada de mestre. Mestre, não, isso já era coisa de um deus. Sua próxima frase os deixaria para sempre embaixo da sola de seus sapatos italianos feitos sob medida. Finalmente calava a todos. Nem mesmo o gerente de estratégia avançada se arriscava a dizer alguma coisa. Aquele projeto de macho alfa, jovem e cheio de dentes, tão voraz que às vezes chegava muito perto de interrompê-lo, finalmente se mostrava indeciso sobre a coisa certa a dizer.

Então viu o sujeitinho da gravata ridícula abrir a boca, o rosto agora tomado por um vermelho-cardeal. O que esse pigmeu pensava que estava fazendo? Só não o havia demitido ainda porque, apesar de francamente insignificante, ele era incrivelmente eficiente. Dois advérbios de modo. Onde mesmo havia lido que os advérbios não eram de bom-tom? Não! A pessoinha pretendia mesmo estragar seu show, seu tapete vermelho para o panteão dos gurus internacionais.
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Percebeu que o diretor-geral tinha os olhos cravados nele. O big boss compreendera que era o único em quem podia confiar. Sim, ele estenderia a mão. Salvaria o grande homem. Faria mais que isso. Seria o funcionário do momento. Finalmente deixaria um obscuro papel secundário para tornar-se protagonista. Levantou a mão com a aliança, a mesma em que ele e a mulher tinham gravado uma lua e uma estrela, em sinal da eternidade de seus sentimentos. Impediu o chefe supremo de falar com esse gesto peremptório. Viu que ele empalidecia, coitado. Comovido, certamente. Interrompeu o diretor-geral antes que ele se afogasse em mais uma frase absurdamente humana.

Pela primeira vez numa reunião de segunda-feira, sua voz soou firme. Quase grossa. Batendo a xícara na mesa, comprada na loja do seu time do coração, espalhou café para todo lado e gritou.

— Eu tenho pau pequenoooooooooo!
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Até hoje, sua demissão por justa causa é, para ele, humanamente incompreensível.