Quentinho

Fazia um frio de geladeira quando entrou no apartamento. Nos últimos tempos aquele frio parecia fazer parte dela. Tanto quanto o sangue, a saliva. Mais do que os dentes. Havia sido um dia de nada. Ela se sentia um nada. Um nada que doía. Desconfortável dentro de um corpo que envelhecia, um corpo que engordava e produzia protuberâncias em lugares estranhos. Olhava para seu rosto e não reconhecia aqueles olhos bovinos. Quem era aquela? Sabia pela dor. A dor a encarnava.

Era tudo tão pequeno e doía. Aquele chefe com remela no canto do olho que a ignorava. Aquele colega que riu quando ela passou. O cobrador do ônibus que não respondeu ao seu bom-dia. O cabelo que não se ajeitava. Ela passara o dia inteiro se obrigando a sorrir um sorriso ignorado por todos. Até o porteiro do prédio não olhou para ela, nem mesmo diante de seu esforço para fazer um comentário sobre a seleção de Dunga. Ela que não entendia nada de futebol. A comédia romântica que pegara na locadora para o final de semana pesava vazia na sua bolsa. Era isso, então, ser adulta?

Pior que sentir tanto frio era senti-lo não por avalanches de neve, mas pelo granizo vulgar da rua. Ela sonhara ser uma mulher de altitudes e atolava em pequenezas de ralo. A cada final do dia, quando voltava para casa, percebia que o frio tinha encolhido ainda mais o comprimento dos seus ossos e ela agora era quase uma anã.

Abriu a porta do apartamento com uma chave hesitante. Do outro lado estava o homem que a amava. Ele olhou para ela e sorriu um sorriso que era só para ela. O homem que a enxergava. O homem quentinho. Ele a abraçou e ela sentiu o gelo estalar. Mais nada. Quero ficar grudada em você, falou. Fica, ele disse. Quero entrar em você, morar dentro de você, no verão de você. Vem, ele disse.

Quando acordou, a cabeça enterrada dentro da cavidade torácica dele, ele estava morto.