“Mãe, onde dormem as pessoas marrons?”

Minha coluna desta quinzena no El País abre com o espanto das crianças sobre este Brasil de muros que construímos para elas, meninos e meninas que nos lembram da importância da interrogação. Vou pensando sobre o Condomínio Brasil, hipótese ousada sugerida pelo psicanalista Christian Dunker em seu mais recente livro, que recomendo muito. A partir de algumas reflexões que o livro me provocou, vou pensando sobre os últimos acontecimentos, sobre as atualizações dos paraísos perdidos e sobre nosso comportamento murado na discussão do país. Acabo chegando no seminário Cidades Rebeldes e na rebelião contra o debate sobre a rebelião, contido no manifesto do Movimento Mães de Maio, talvez a crítica recente mais cortante de um movimento social ao PT, a Lula e aos intelectuais.

Termino com uma delicadeza que guardo na minha vida para momentos especiais. O passo de Tim Tim, que me salva quando me sinto encurralada demais, tanto pelos muros externos quanto pelos internos. Afinal, a Alphaville mais defendida é aquela que mora em nós.

“Mãe, onde dormem as pessoas marrons?”

 

A pergunta de criança denuncia a vida entre muros do condomínio chamado Brasil

Uma amiga me conta, na volta de uma viagem a Paris com a família. “Só quando estava lá é que percebi que minha filha estava, literalmente, andando na rua pela primeira vez”. A menina tem quatro anos. Classe média. Mora em São Paulo, num condomínio fechado. Do condomínio, vai de carro para a escola privada. Da escola privada volta para casa. No fim de semana, fica dentro do seu condomínio ou vai para outros condomínios, de casas ou prédios, cercados por muros ou grades, com guaritas e porteiros. Ou vai a shoppings, onde chega pelo estacionamento, de onde sai pelo estacionamento. Desloca-se apenas de carro, bem presa na cadeirinha, protegida atrás de janelas fechadas, vidros escurecidos com insulfilm. De muro em muro, a criança passou os primeiros quatro anos de vida sem pisar na rua, a não ser por breves e arriscados instantes. E apenas quando a rua não pôde ser evitada. E apenas como percurso rápido, temeroso, entre um muro e outro.

A cidade é uma paisagem do outro lado do vidro, uma paisagem que ela espia mas não toca. O fora, o lado exterior, é uma ameaça. O outro é aquele com quem ela não pode conviver, tanto que não deve nem enxergá-la. Até mesmo contatos visuais devem ser evitados, encontros de olhares também são perigosos. Qualquer permeabilidade entre o dentro e o fora, entre a rua e o muro, seja na casa, na escola, no shopping ou no carro, ela já aprendeu a decodificar como intrusão. O outro é o intruso, aquele que, se entrar, vai tirar dela alguma coisa. Se a tocar, vai contaminá-la. Se a enxergar, vai ameaçá-la.

(…)

 (…)  Quanto tudo parece quase intransponível, quando me vejo cercada de muros que me encurralam, os de fora, mas também os de dentro, eu lembro do passo de Tim Tim. E encontro esperança nessa geração que está sendo educada no resgate do espaço público para todos, arriscando-se às diferenças para combater a desigualdade. Arriscando-se à experiência. Às vezes a vida pede a delicadeza de descobrir a rebelião também nos passos vacilantes, mas muito entusiasmados, de um guri com um redemoinho na cabeça.

 Leia o texto inteiro aqui.