A vingança

(em memória de tia A.)

Esta minha tia tinha nome de anjo. Talvez tenha sido parecida com um querubim no parto, antes de ser contaminada pelas coisas do mundo. Ou melhor, pelo casamento. Nós, seus sobrinhos-netos, sempre a conhecemos empertigada, ela inteira uma carne de pescoço. Era louca pelo marido. Ou havia sido. Ele, porém, era um bom homem da sua época. Acreditava piamente que a esposa era um útero. Procurou-a, como se dizia, apenas o necessário para fazer um trio de filhos. Depois só a usava na cama para esquentar seus grandes pés avermelhados e de unhas compridas porque sofria com encravamentos. Jurava que era sinal de respeito. Voltava para casa perfumado com a pele de outras mulheres a quem podia desrespeitar à vontade. E o fazia com empenho. O cheiro das outras todas entrava pelas narinas abertas da minha tia e lhe empestava a alma. Me desrespeita, ela dizia. Ele a olhava com olhos enfadados. Esposa é esposa, mulher é mulher. Você é a mãe de meus filhos, oras. Tome tento, criatura! Virava para o lado e entregava-se à produção de roncos de leão.

No dia seguinte a despachava a rezar para a virgem na igreja matriz. Para aprender o seu dever. Minha tia engolia o desaforo como se fosse arsênico e alimentava com ele uma vingança que lhe crescia nas entranhas como um cachorrinho de estimação. Um Rotweiler. Enquanto sua vagina ganhava a virgindade do abandono, ela acariciava este tumor que lhe crescia por dentro. E a cada vez que o marido voltava tonto de luxúria ou de perfume doce, ela jurava: “Um dia eu me vingo”.

Quando o pinto do meu tio tornou-se apenas pele murcha entre suas pernas artríticas num tempo em que o viagra ainda não fora descoberto, ela remoçou. Seu rosto de uva passa ganhou um viço de menina e uma de minhas primas ficou dois dias sem falar, levada a todos os médicos sem sucesso depois de flagrar-lhe um sorriso. No interior daquela casa enfeitada com chinelinhos de porcelana pelas paredes e arranjos de flores de plástico sobre guardanapinhos de crochê, meu tio purgava. Sem poder andar por uma doença de velho, assistia impotente de tudo à minha tia sentada diante dele com um banquete no colo que devorava lambendo com desvergonhas os lábios e os dedos. E lhe atirava os restos no colo como se ele nada fosse além de um guaipeca sem fundamento. Esquecia-se de levá-lo para cama, e o homem antes tão garboso agora tinha o formato da poltrona em que ela o sentara havia anos. Só o tirava para um banho gelado, especialmente se os dias amanhecessem com geada.

Meu tio que ainda conseguia falar se queixava de todas estas atrocidades quando era visitado pelos filhos e parentes. Mas ela sacudia seus macios cabelos de merengue e sussurrava. Coitado, está variando das ideias. Um homem tão bom, tão inteligente. Ah, a velhice não poupa ninguém. E lá se ia a fritar uns bolinhos de chuva para as visitas. É uma pena que ele não possa comer, o meu querido. Qualquer fritura lhe desgraça o fígado, vejam só como está magro como um passarinho. E como lá estava ele cheiroso por tantos banhos, bem acomodado na poltrona, ninguém o escutava. Ao contrário. Ao sair de lá minha mãe e minhas tias comentavam. Esta mulher é um anjo. Tal qual o nome. E ele a maltratou tanto… Nem merecia este tratamento de príncipe.

Eu e minhas primas, que gastávamos boa parte de nossos dias espionando esta tia que nos aterrorizava desde o nascimento com beliscões e puxões de orelha, aplicados com ganas e sempre escondidos de nossas mães, nunca cogitamos contar o que se passava. Temíamos. Numa manhã especialmente fria, com a rádio da cidade prevendo neve a qualquer momento, meu tio amanheceu morto. Foi preciso quebrar-lhe as juntas para caber em linha reta no caixão que ela comprou suntuoso, engalanado de leões dourados e forrado de cetim marfim. Para o bem-estar do falecido no além ela não pouparia esforços nem economias. Causou certo mal-estar e comentários sussurrados a visão daquele agora pequeno homem metido num terno xadrez de verde e rosa como se fosse um passista da Mangueira. E a gravata não menos espalhafatosa em sua estampa de corações. Era um desejo antigo dele, ela garantia, as lágrimas abrindo sulcos no pó de arroz.

As dúvidas, se as havia, se dirimiram ao testemunharem sua devoção ao falecido, já que não houve nunca uma viúva mais dedicada. Toda manhã ela empreendia com sua sombrinha preta e um buquê de gérberas colhidas do jardim a subida da lomba do cemitério. Só nós sabíamos que ela distribuía as flores pelos túmulos vizinhos e ao chegar ao do marido protagonizava uma cena que nos emudecia. Trepava em cima da tinta prateada com uma agilidade de acrobata e, entre figuras de flores e querubins, acocorava-se de pernas bem abertas e mijava no falecido. Descia a solitária lomba do cemitério cantarolando uma marchinha antiga de carnaval.

Como uma autômata eu a seguia a cada dia, sem conseguir me libertar do ritual. Penso que ela adivinhava minha presença. E apreciava uma plateia para sua vingança. Numa manhã, enfiada numa saia preta de viúva, vi seu rosto se contorcer e pensei que ela estava tendo uma síncope enquanto urinava no seu homem. Logo depois, porém, ela desceu de lá um pouco trôpega e mais tarde mandou entregar-me um prato com bolinhos que joguei para as galinhas no quintal.

No dia seguinte um quadro de moldura dourada de exageros com um retrato de meu tio nos tempos em que se dava ares de Rodolfo Valentino encimava a lareira da casa. Daquele dia em diante minha empertigada tia se tornou uma mulher expansiva e sorridente, entrou para um grupo de carteado e passou a frequentar bailes da terceira idade. Se não me engano, ganhou até um título de miss num concurso regional. Nunca mais a segui. Só fui entender aquele dia muito, muito mais tarde, quando deixei de ser menina.