Agora eu conheço seu nome

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Foi a primeira pessoa que eu vi ao chegar ao povoado do interior da Bolívia. Seu escritório, digamos assim, ficava ao lado do que seria o meu por uma semana. Poderia ser um antagonismo da geografia urbana, já que um salvava vidas — e o outro aguardava a morte. Mas não era. Há algum tempo sei que a morte não é uma anomalia, mas a carne da vida. E a localização, por um destes acasos — ou não —, era perfeita.

O dele — sim, porque era un hombre — era apenas uma portinha e lá dentro se vislumbrava um caixão lustroso com um séquito de lâmpadas de globos roxos que mais tarde ele me explicaria serem de bom gosto e até de bom tom nos sepultamentos de gente de monta. Ele posicionava uma cadeira simples na esquina leste de seu quadrilátero, entre a porta e o interior, astutamente um pouco fora e um pouco dentro. De segunda a segunda, sem escapar dos domingos. La muerte no escoge hora, me explicaria mais tarde.

O fato é que desde que envolvi meus pés nos redemoinhos de poeira desta rua específica, não consegui despregar meus olhos de sua figura comum apenas à primeira vista. Voltei a fumar um cigarro bem desqualificado que era o único que por ali se vendia só para ter uma desculpa de ficar na calçada rodeando aquele homem nem gordo nem magro, idade indefinida, com uma sombra de bigode sobre a boca de peixe. Ficava eu ali, dando baforadas em espiral enquanto o apalpava com os olhos. Ele me espiava e logo virava a cara.

O homem passava a manhã — ou melhor, deixava a manhã passar por ele — sentado em sua esquina particular, mirando obliquamente a esquina com a avenida principal. Mais ou menos de três em três horas levantava-se, tirava o casaco de lã fina, pegava um pano e lustrava o caixão. Depois, sacava a vassoura e dava uma passada que, observei bem, deixava tudo no mesmo lugar. O mesmo movimento que ia em seguida retornava. Filosófico, pensei. Circular. Como para os gregos clássicos. Ou, no caso dele, a cosmogonia andina.

Então, ele voltava a vestir o casaco, sentava-se e acomodava o olhar por mais três horas. Quando eu chegava, ao amanhecer, ele já estava ali. Quando eu saía, no breu da noite, ele continuava ali. Nunca o vi sequer comer pollo con papa, o feijão com arroz dos bolivianos em qualquer parte. Comecei a desconfiar que era imortal. Mas, morto ou vivo, ele me espiava. E eu sabia que se agarrasse aquele rabo de olho na hora exata ele seria um pouco meu.

Numa manhã parei bem na sua frente, quase lhe causando uma morte súbita, o que seria péssimo para os negócios. Estendi-lhe uma mão que, depois de alguma hesitação, ele acabou apertando com a sua, morna e mole — e não seca e fria como eu supunha em minhas fantasias. Me apresentei. Ele deixou escorrer um sorriso frouxo. Eu não recuei. ¿Cuál es su nombre? Mário, pronunciou numa voz baixa. Mucho gusto, acrescentei. Estava orgulhosa do meu espanhol e da abordagem.

Perguntei sobre os globos roxos, o tipo de madeira do caixão, se pensava que havia algum conforto naquele cetim interior, se ele acreditava em vida após a morte. Mário respondia impassível e um tanto monossilábico. Seu olhar só sofreu uma alteração repentina quando perguntei a ele se morria muita gente. Nada, exaltou-se um pouco. Faz meses que não morre ninguém. E voltou a olhar para a esquina, dando a conversa por encerrada. Eu ainda insisti, acendendo um cigarro no outro. ¿Pero, como sobrevive usted si la gente insiste en no morir? Mário se animou a ponto de despregar os olhos da esquina e pregá-los nos meus. La muerte siempre llega, tarde o temprano. Yo voy a estar aquí. Esperando. E com esta eu me despedi, pensando que Mário tinha o objetivo de me assustar.

No outro dia, mais um cigarro. Para descobrir que Mário não queria mais hablar comigo. Tinha verdadeiros sobressaltos quando eu lhe dava buenos dias ou buenas tardes ou buenas noches. Pior ainda quando eu gritava um hasta luego! Nos dias restantes ficávamos lá, eu olhando para Mário, e Mário olhando para a esquina. Numa noite, uma das últimas de minha estadia na cidadezinha, apareceu um anão. Havia Mário e um anão vestido de dourado. Não conversavam. Eu estava doida para botar minhas duas mãos no anão, mas Mário me deu um olhar indubitável. Eu não seria bienvenida. Mesmo. De pirraça, fumei dois cigarros inteiros olhando para eles. E tive uma crise de bronquite à noite.

No dia da partida, a manhã nasceu como um bom augúrio para morte. Chovia pela primeira vez desde a minha chegada. Caminhei resoluta até Mário. Estendi-lhe uma mão molhada. Me voy. Y adiós. Tive eu um susto desta vez. Mário agarrou minha mão com força e não a queria largar. Tengo que irme, lhe disse. Quédate un poco más. Unos días más ya es suficiente. Então compreendi. Arranquei minha mão com um safanão e saí num passo rápido, destituído de qualquer resquício de dignidade.

Na viagem de retorno tive certeza de que Mário era mesmo a própria morte, apenas que um pouco entediada com a vida. Abri uma biografia de Evo Morales e comecei a ler, disposta a esquecer o assunto. Senti um primeiro enjoo. Pensei que era a sopa de quinua com pedaços de carne de lhama que havia comido antes de embarcar. De súbito senti um peso no peito. E caí sobre o banco do avião.

Sobrevivi. Mas agora, dia após dia, escuto Mário varrendo.