Como se conquista a felicidade?

Descubra como com uma prostituta chamada Ilya

Ilya é prostituta no porto de Pireu, o mais famoso da Grécia. E é absurdamente feliz. Homero é um filósofo, um escritor americano que ancora determinado a iniciar uma odisséia pessoal para descobrir porque nosso mundo é tão infeliz. Os nomes, obviamente, não são um acaso. Homero acredita que, pisando sobre a mesma trilha de Aristóteles, Sócrates e Platão, vai encontrar a resposta que procura. Ele acha que, se descobrir porque a Grécia clássica, apogeu da experiência humana, entrou em declínio, pode alcançar o mistério. Ilya e sua felicidade são incompreensíveis para o filósofo, que precisa entender, não sentir. A felicidade de Ilya, por inacessível que é, o ofende. Decide então que a prostituta feliz simboliza a Grécia em declínio. Se conseguir redimi-la, pode redimir o mundo. A redenção de Ilya é a salvação do mundo. E, quem sabe, ao salvar o mundo, também ele possa ser feliz.

Esse é o enredo de Nunca aos domingos, um filme antigo, preto e branco, de 1959. Assisti-o pela primeira vez na noite da última sexta-feira, para respeitar o título. Foi o presente de aniversário de dois amigos muito queridos. Como passei 43 anos sem conhecê-lo? Ele já existia quando eu nasci. E levou mais de quatro décadas para chegar a mim. Escrevo sobre ele com o desejo de que você, que me lê, tenha vontade de correr para a locadora e abreviar o tempo que ainda poderia esperar. Sabe quando você encontra algo muito especial – e muito simples, como um filme, um livro ou uma comida – e quer compartilhá-lo com o mundo inteiro? Pois é. Nunca aos domingos é, ele mesmo, uma experiência de felicidade. Me descobri com aquele sorriso bobo no rosto na maior parte do tempo. Aquele sem dentes, embevecido, que a gente só pendura na cara quando não tem ninguém olhando.

Ilya rejeita tudo o que é mau e feio, no seu ponto de vista. No festival de teatro de Atenas, ela bota uma placa de papelão na porta de seu apartamento tão assediado: “Fechado por causa da tragédia grega”. Ela as adora, mas as interpreta a seu modo. Homero, para quem Ilya virou um objeto de estudo, se escandaliza. Para ela, todas as tragédias terminam com a mesma frase: “e foram todos para a praia”. Uma variação do “e foram todos felizes para sempre”. “Ela deu um final feliz para a tragédia grega?”, pergunta ele, estarrecido, a seu amigo capitão. “Ilya é feliz, tem a sua forma própria de ver a vida. Deixe-a em paz”, responde o capitão, que é o verdadeiro filósofo da história.

Mas deixá-la em paz é tudo o que Homero não consegue. Ele é zeloso demais de sua verdade para ter essa grandeza. Quando sua suposta verdade é posta em xeque pela experiência da vida, por outras verdades, ele sente-se em risco. E precisa destruir a causa de sua insegurança, com a melhor das intenções. Não conhecemos tantas pessoas assim, para quem tudo o que é diferente de sua crença ou certeza torna-se imediatamente ameaçador e precisa ser destruído? Quantas vezes nós mesmos não agimos assim diante do novo? E, para ocultar o nosso medo, invocamos a fé, a ideologia, a moral ou uma suposta sabedoria que só nós temos para travestirmos de bons princípios a nossa incapacidade de ver e escutar o outro, a nossa deformação, exposta ao rejeitarmos tudo o que é diferente de nós como errado ou impuro.

Para Homero, Ilya não é uma mulher, é uma ideia. Ele possivelmente seria mais feliz se apenas assumisse seu desejo de se deitar com ela para fazer amor. Mas isso era banal demais para Homero, que só acreditava no acesso ao conhecimento pela razão, jamais pelos sentidos. A única porta que se sentia seguro ao escancarar era a dos livros. A da carne era insuportavelmente temerária. E por isso ele precisava desprezá-la. Não bastava fechar essa porta, era necessário destruí-la, dinamitar o caminho.

Homero quer incutir na mente de Ilya – ele, que tanto teme seu corpo –, “razão em lugar de fantasia, moralidade em lugar de imoralidade”. Quer transformá-la. Ele diz ao capitão: “A lei deve ser restabelecida em toda parte, não vê?”. Ao que o capitão responde: “Vejo que você terá os olhos vendados por toda a vida”. Mas Homero, como tantos grandes pequenos homens de nosso mundo, é arrogante demais para escutar. Ele começa por impor a Ilya a interpretação “correta” das tragédias gregas. E arranca de Ilya seu prazer pelo teatro, aguardado por ela com tanta expectativa. Deixa Ilya triste.

A cena em que Homero irrompe no quarto em que Ilya dorme depois de uma noite intensa é antológica.

– Você é feliz? – ele pergunta.
– Sou – ela diz.
– Você gosta da sua vida?
– Gosto.
– Você gosta do seu trabalho?
– Gosto.
– O que exatamente te faz feliz?
– O sol brilha sobre mim. Faz-me feliz. Se como um bom pescado, fico feliz. Toco-te, e se eu gostar do tato, sou feliz.

Ilya diz a Homero o que sua vida já tinha demonstrado a Homero. Mas Homero não era capaz de escutar a vida, menos ainda as palavras. Ele faz a ela a proposta:

– E se eu te demonstrasse que você não é feliz?

Homero então convence Ilya a lhe dar duas semanas de sua vida para que possa salvá-la. Ao fazê-lo, une-se ao único inimigo de Ilya, que por razões mais pragmáticas, também quer que ela desista de ser o que é. Mas Homero, como tantos que conhecemos, acredita que a degradação está sempre no outro. Suas boas intenções o absolvem previamente de todos os crimes que possa vir a cometer em sua ânsia por impor um único jeito “certo” de viver.

E o resto não vou contar, para respeitar o prazer de quem deseja assistir ao filme.

Será que Homero vai descobrir que é ele – e não Ilya – que vive na fantasia? Que de fato ele não estava procurando, sua busca era só um subterfúgio para seu verdadeiro objetivo, o de convencer a todos, e principalmente a si mesmo, que sua escolha era a única certa? E, quando encontra uma resposta que não buscava, não é capaz de aceitá-la? Será que Homero vai perceber que é ele que está sendo transformado enquanto tenta transformar Ilya?

As perguntas que a história de Homero suscita valem a pena porque podem ser aplicadas a cada um de nós. Será que não somos mais como ele e menos como Ilya ao olhar para o mundo, para o outro e para nós mesmos? Ilya olhava com imensa generosidade para a sua vida – e para a do outro. Por isso era feliz e fazia os outros felizes. E você? Como olha para a sua vida? E para a do outro?

Sempre fico curiosa com a quantidade de livros, palestras e dvds sobre a fórmula da felicidade. E como isso vende. O próprio título dessa coluna é um chamariz para todos nós, que nos deixamos seduzir pelo apelo publicitário da felicidade, por uma pretensa receita de felicidade como mais um artigo a ser comprado e consumido. O que Ilya nos mostra, sem nenhuma intenção de mostrar, é o óbvio: não há nenhuma fórmula. Assim como não há uma única interpretação para esse filme. Cada um precisa encontrar o seu modo de olhar para a tragédia grega que é a nossa aventura no mundo. É esse modo de olhar que nos dá a singularidade de nossa experiência, nos torna únicos ao nosso próprio modo.

O que me parece, apenas, é que quanto mais nos fixamos em certezas de certezas, mais longe estamos das possibilidades de descoberta e, talvez, de bocados de felicidade. As receitas de felicidade não fazem nada além de obedecer ao mercado, são mais um objeto de consumo que precisamos comprar para manter as engrenagens funcionando. Somos bombardeados minuto a minuto com receitas embaladas na fórmula: dinheiro + beleza e juventude + poder = sucesso. E sucesso = felicidade. E um pouco mais: precisamos ter sucesso e ser felizes de uma determinada maneira que nos vendem como a única possível. E, sem pensar, vamos comprando devagarinho, com uma pequena rebelião aqui, outra acolá. A alma não se vende de uma vez só, como em alguns clássicos, ela nos é roubada pelos flancos, aos poucos.

Pare por alguns minutos, agora. Se estiver trabalhando, se esconda, nem que seja no banheiro. Vasculhe suas memórias. Quando foi que você realmente foi feliz? Com a felicidade absurda de Ilya? Cada um tem a sua resposta. Eu descobri, neste exercício, que meus momentos de felicidade foram um sentimento profundo de amor por um homem, o gosto desse homem, uma série de feijoadas, o sabor de um vinho, muitos livros e filmes, um banho quente, uma atmosfera na casa de meus pais, compartilhando silêncios, as várias vezes em que percebo a beleza inabarcável da minha filha, as longas conversas com meus amigos mais queridos, uma paisagem passando pela janela do trem, do ônibus, do carro, todas as vezes em que meu irmão tenta me explicar os mistérios do universo com os olhos brilhando mais que as estrelas (acho que nunca aprendo também para que ele possa repetir a explicação), o cheiro do frio da manhã desse último sábado, o sol da manhã desse último sábado. São tantos. E nenhum deles exigiu a aplicação da fórmula com que nos bombardeiam todos os dias, aquela pela qual nos deixamos escravizar.

Com ganas de Pigmalião, Homero encontrou uma mulher que se recusou a virar estátua. E uma resposta que não foi buscar. Jules Dassin (1911-2008), o diretor de Nunca aos domingos, paradoxalmente também. Americano de família judia, ele foi uma das vítimas mais famosas do macartismo, na Guerra Fria. Seu nome estava na lista negra de Hollywood, acusado de ser comunista. Dassin teve de deixar os Estados Unidos, onde foi assistente de direção de Alfred Hitchcock, e procurar trabalho na Europa. Uma tragédia, sem dúvida. Mas talvez o melhor que poderia ter acontecido a ele. No exílio, ele conheceu sua musa, a grega Melina Mercouri (1920-1994). Dassin interpreta Homero, Melina encarna Ilya. Pelo papel, ela ganhou o prêmio de melhor atriz do festival de Cannes, em 1960. Três anos antes, Giuletta Masina ganhava o mesmo prêmio por outra prostituta extraordinária, no imperdível Noites de Cabíria (1957), de Federico Fellini.

Como a Ilya de Nunca aos domingos, Melina é uma gigante. Perto dos 40, em sua beleza nada convencional, de olhos rasgados e boca grande, ela tinha demasiada idade para as heroínas da época. Mas ninguém ousou imaginar outra atriz para o papel. Melina era poderosa, na tela e fora dela. Muitos anos depois, disse uma frase aos ditadores militares que tentaram cassar sua cidadania nos anos 70: “Eu sou grega e vou morrer grega. Vocês são fascistas e vão morrer fascistas”. Mais tarde, na redemocratização do país, tornou-se a ministra da cultura da Grécia.

Melinda é Ilya. E torna-se a Ilya de Jules Dassin. Perseguido e banido de seu país pela doutrina do macartismo, Dassin reafirma a liberdade das escolhas com esse filme que, com humor, sutileza e encanto, é uma crítica a todas as doutrinas que esmagam o homem e a invenção da vida. Com ele, de mãos dadas com sua Ilya, Dassin também termina à beira-mar.

E você? Qual foi seu último momento de felicidade? Se quiser, compartilhe-o com todos nós aqui nesse espaço que não é meu. Aqui, eu só inicio. “E vamos todos juntos à praia?”.

(Publicado na Revista Época em 15/06/2009)