A santa

Desejou o homem desde que o viu na cruz pela primeira vez. Aquela nudez tão diferente dela, ao mesmo tempo tão entregue. Tão dela. Esse deus que revelava a divindade que também nela habitava.

A mãe ficou encantada quando ela, a quem ainda faltava a completude dos dentes de leite, pediu um crucifixo em vez de uma Barbie no nascimento de seu primeiro e, tinha certeza, único amor de quantas vidas tivesse. Desde aquele Natal, para sempre citado na crônica familiar, ela carregava seu próprio divino homem para sua cama de menina e se sentia una, para além de todas as tentações da carne que não fossem a carne em chagas dele.

Lambeu cada uma de suas feridas e secou seu sangue com os cabelos, dia após dia. Noite após noite. E sua devoção era tanta que a família logo entendeu que à obra ela pertencia. Entendeu e se orgulhou daquela que havia saído de um ventre pecador para uma pureza para sempre intocada.

Transferida à casa das moças que só amavam o homem divino, ela trouxe com ela uma paixão tão feita carne que a superiora temeu. Era tão poderosa sua transfiguração durante o ritual sagrado que outras moças queriam seguir seus passos para também alcançar aquele olhar esgazeado que era o primeiro sinal do corpo dela alterado pelo amor divino dele.

Nos intervalos das aulas um grupo de jovens mulheres reunia-se em torno dela para testemunhar o momento em que proferia votos eternos de amá-lo com a força de tudo o que era. Seu corpo estremecia inteiro, e ela desmaiava enquanto suas seguidoras choravam diante da inteireza daquela fé.

Quando a superiora a recolhia do chão, tentava lhe mostrar que a fúria desse amor deveria ser guardada para si. Ainda suja de terra e suor, ela gritava: “Aniquilar-se por amor é o mais elevado que existe!”.

Agarrada à imagem do homem seminu, alcançava o centro do pátio e declamava. “Oh, Deus, tu que te derramas em teu dom. Tu que fluis em teu amor. Tu que ardes em teu desejo. Tu que te fundes na união com tua amada. Tu que repousas entre meus seios. Sem ti não posso ser.”

Já não sabia onde acabava ela, onde terminava ele. Entregara-se ao amor que a tudo redimia. E tamanho arrebatamento alcançava que expressá-lo com seus beijos e seus líquidos já não era suficiente.

Agora não ia mais ao pátio, uma notícia que muito alegrou a superiora. Deitada em seu leito, os olhos postos no teto e o rosto transmutado em felicidade, ela balbuciava para uma plateia cada vez mais numerosa. “O amor cuja força infinita dilata minha essência, até o ponto em que me entrego toda ao seu nobre renascimento.”

E entregava-se, diante dos olhos de todas. E ao redor delas muitas e cada vez mais tombavam com os olhos vidrados. Como vitrais da igreja que é cada corpo.

A fama desse amor tão grande e de tão elevada felicidade ultrapassou as pesadas paredes da casa e ganhou o mundo. Diante dos portões era cada vez maior o número de mulheres em busca de beber desta mesma fé. Já não eram mais apenas as jovens de alma tenra, mas também senhoras casadas de há muito, mães de filhos em idade escolar, até avós.

Basta, disse a superiora. Chamou a família da devota, que nada entendeu, orgulhosa que sempre esteve dessa filha tão entregue ao amor do único homem puro neste e no outro mundo. Levem-na. É louca.

Quando a arrastaram da cama, ela se desviou de seu deslumbramento para dizer à superiora com uns olhos que para sempre causariam pesadelos na mulher de carne tão dura. “Ó, amado, que dirão as gentes da religião? Declaram que me extraviei. A verdade se declara ao meu coração. Sou a amada de um só. Este dom mata meu pensamento com as delícias de seu amor. Delícias que me exaltam e me transformam por união no gozo eterno de ser do divino amor.”

Cala-te, herege, bradava a superiora. E ela continuava, e atrás dela uma fileira de disciplinadas religiosas caía. “O divino amor me disse que entrou em mim, de modo que pode tudo o que quiser. A ele estou consagrada. Ele quer que eu o ame, de modo que o amarei.”

Rubra de vergonha e ódio, a superiora expulsou a ela e a família, que rubra de vergonha e ódio confinou aquela que havia sido motivo de orgulho e de suas melhores esperanças na casa de loucos da cidade grande.

Desde que lá pisou as insanas e também as doidas não mais precisaram de remédios, e até os funcionários começaram a cair de bem-aventurança pelo chão. A ponto de a diretora sobressaltar-se e chamar sua família para que a levasse dali o mais rápido possível. Apenas tirem-na da minha frente, berrou, fora de si. A família recusou-se, partiu em busca de seus direitos e os achou na forma de uma liminar judicial obrigando a instituição a mantê-la ali até o julgamento do caso.

Enquanto o processo tramitava em muitos escaninhos, ela morreu incinerada em um incêndio que consumiu apenas a ala por ela habitada. A polícia nunca descobriu a causa. Nem a família a pressionou para isso. Tampouco o Ministério Público achou que deveria mexer em tal coroa de espinhos.

A última funcionária a vê-la contou que morreu devorada por línguas de fogo gritando o nome do amor a quem se entregou também nas vidas feitas de pequenas mortes. Não parecia sofrer, garantiu.

O que não contou é que havia tanto êxtase no rosto e no corpo que se contorcia entre as chamas que não pôde esquecer. À noite, quando a funcionária se deitou com o homem que era seu, a lembrança do martírio fez nela o primeiro de muitos milagres.