O buraco

Vai ter de abrir, disse o encanador.

As duas mulheres se olharam. Cada uma em seu apartamento. Uma em cima, outra embaixo. Se não tem outro jeito, concordaram as duas, em uníssono, cada uma em seu universo.

No dia marcado ele chegou com uma máquina de formato estranho. Ameaçadora. Vai fazer barulho, avisou. Se eu fosse aos pouquinhos, levaria dias. Vai fazer barulho, mas em meia hora eu faço o buraco.

As duas em pé, cada uma em seu banheiro. O salto de uma na cabeça da outra. Quando o barulho começou, taparam os ouvidos e escutaram a correria do coração, os líquidos desmanchando o café da manhã no estômago. O barulho acabou.

Espiaram, tímidas. Pelo buraco. Encararam-se pela primeira vez. E assustaram-se com o que viram.

À noite, a de cima sonhou que caía no buraco quando se levantava para ir ao banheiro no escuro. E o buraco era a toca do coelho da Alice. E a de baixo sonhou que era sugada para cima e alcançava o céu. Mas era tudo ao contrário do que o padre dizia. No céu morava o diabo. E no inferno era deus.

Quando amanheceu, as duas se esgueiraram até o buraco. E como seus olhos se encontrassem, tiveram de dar bom-dia. A cada hora do relógio davam uma espiada pelo buraco, na ponta dos pés, com a esquina dos olhos. Azuis de uma, pretos da outra. Já não era possível ter sossego no apartamento de nenhuma agora que uma poderia alcançar a outra.

Desde que o vazamento se infiltrou pelo concreto, os alicerces do cotidiano de ambas foram abalados por aquela ligação indesejada em que a água suja da nudez de uma alcançava o corpo da outra. Aquele fino fluxo aquoso de cor indefinida forjando uma intimidade indesejada feita de células mortas.

No dia seguinte o encanador voltou. Examinou as entranhas do buraco. Descobriu onde está o vazamento, anunciou com sua voz de homem que resolve coisas que mulher não entende. Vou poder tapar o buraco hoje mesmo. Uma em cima da outra, uma embaixo da outra, suspiraram de alívio.

Quando o buraco foi preenchido e de novo estavam separadas por concreto, puderam voltar a dormir. No meio da noite acordaram com um soluço do coração. Souberam então que entre elas algo continuava aberto. E vazando.