O que fazer com a memória? Documentário acompanha a viagem de quatro filhos em busca da vida do pai, um sobrevivente do Holocausto, nos campos de concentração nazistas
– Alô, é do sanatório? Sim, David Fisher fugiu. Mas eu estou aqui com ele. Querem fazer o favor de buscá-lo? Ele está visitando campos de concentração. É sua ideia de férias.
A brincadeira é feita por um dos irmãos do cineasta israelense David Fisher. Neste momento, David e seus três irmãos estão numa van a caminho dos campos de concentração onde seu pai, Joseph, foi confinado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. É o início da viagem, e eles fazem muitas piadas sobre o fato de terem aceitado o convite do irmão maluco, abandonado suas próprias famílias e iniciado as férias mais estranhas da sua vida. Assim começa “Six million and one” (Seis milhões e um), filme exibido na mostra competitiva do IDFA, um dos festivais de documentários mais importantes do mundo, realizado em Amsterdã, na Holanda, de 16 a 27 deste mês.
O filme toca numa questão em aberto: como a segunda (ou terceira) geração de sobreviventes do Holocausto – ou de qualquer outra tragédia humanitária – lida com a memória. O que se faz com o horror? É possível esquecer? Ou é possível fingir que esquecemos? Ou ainda: como esquecer aquilo que só conhecemos como lembrança dos pais (ou avós)? Há uma diferença entre aquilo que esquecemos porque pode ser lembrado e aquilo que fingimos esquecer porque não podemos lembrar. E por isso ecoa dentro de nós dia após dia.
Os irmãos de David acreditavam que o melhor jeito de lidar com a memória era não lidar. Mas um dia David ligou para suas casas e convidou-os para uma viagem ao passado presente do pai. David tem a autoridade do irmão mais velho. E por esta ou por outras razões naquele momento inconfessáveis, eles aceitaram o convite. Irônicos, afetuosos, rabugentos, mas sempre íntimos, os quatro adultos com rugas no rosto e cabelos rajados de cinza iniciam a jornada rumo ao horror que também os constituía sem jamais ter sido pronunciado.
Enquanto vivera, o pai quase nada havia contado sobre sua vida nos campos de concentração. Apenas os lugares onde esteve e pouco mais. Mas, dois anos antes de morrer, ele escreveu suas memórias num caderno. É o legado do pai. E é este diário que agora queima nas mãos dos filhos. E que David foi o único a ler. “Por que eu preciso passar por isso?”, reclama a irmã, única mulher no grupo. “Eu não preciso visitar campos de concentração. Sempre carreguei isso dentro de mim. Isso sempre esteve lá, no nosso café da manhã.”
Por quê? É o que eles descobrem nessa saga familiar. Em um dos momentos mais belos do filme, todos estão sentados dentro do túnel construído pelos judeus para ser uma fábrica subterrânea de fuselagem para aviões nazistas. É um lugar claustrofóbico e insalubre, e nas paredes há marcas das unhas dos prisioneiros. Pouco antes, o responsável pelo lugar havia dito: “Não é possível que seu pai tenha sobrevivido dez meses cavando esse túnel. A sobrevivência média dos judeus que cavavam era de uma semana”.
O pai sobreviveu a isso e a bem mais do que isso. E ali, no túnel, já varridos por sentimentos contraditórios, os filhos fazem a catarse que pertence a todas as famílias – e que, afinal, é a prova de que sobreviveram. Falam de desamor, de ciúmes, de desamparo, de rivalidades, de raiva. Brigam, choram e riem. E então é preciso sair do túnel e seguir adiante.
Por que é importante lembrar? Essa é a pergunta que diz respeito não só a David e a seus irmãos, mas a todos nós. Por causa dessa indagação universal o filme tem lotado as salas de cinema de Amsterdã. Tudo o que é vergonhoso ou aterrorizante costuma ser relegado ao esquecimento. “É melhor não mexer nisso”. Ou “não vamos falar disso”. Ou ainda o clássico “com o tempo você esquece”. Ou o pior de todos: “não aconteceu”. A verdade, como anos atrás me ensinou uma judia que fugiu da Alemanha nazista e teve a mãe incinerada num campo de concentração, é que, “com o tempo, a gente não esquece”.
Não há como esquecer, é o que também afirmam os veteranos americanos com quem David conversa para saber como foi o dia da libertação. “Nós não sabíamos que havia um campo de concentração ali. Então, quando encontramos os judeus presos lá dentro, sem água nem comida, eles nos cercaram, nos agarraram. Eles tinham fome. E nós demos comida. E demos cigarro porque pediram. E pensávamos que fumariam o cigarro, mas eles comeram o cigarro”, conta o velho soldado. Nesse momento, o queixo do seu companheiro de tropa começa a tremer e logo todo o seu rosto treme. “Nós demos comida, e eles morreram duas horas depois porque o estômago deles não suportava tanta comida. Eu me sinto culpado porque dei comida, e eles morreram.”
É sobre a capacidade humana de produzir horror que o pai de David escreve. “Às vezes, um nazista entrava no dormitório e acordava um de nós. E escolhia outro, muito maior e mais forte para sentar sobre o peito do mais fraco até que ele morresse asfixiado. Eu fingia que estava dormindo enquanto isso acontecia”, é um dos trechos do diário. Ou: “Dentro do túnel, eles botavam gente puxando a carroça no lugar dos cavalos. Lembro de um pai e de um filho, poloneses. O nazista mandou que o filho chicoteasse o pai, mas o menino se recusou. O pai, temeroso pelo filho, ordenou: me chicoteie bem forte”.
Só há um jeito de esquecer o horror: lembrar. É por saber disso que David empurra os irmãos para uma travessia que lhes permita sair mais vivos do outro lado. Se não lidamos com a memória do horror, seja ele qual for na vida de cada um, ele pulsa dentro de nós como um buraco negro que nos engole de dentro para dentro. O horror fica ali, vagando livremente por cada centímetro de nossa vastidão interna, numa repetição sem fim e sem destino. É por isso que no Brasil é preciso que todos compreendam que o acesso à memória é um direito inalienável de cada ser humano – não como vingança, mas para que se possa deixar de vagar pelo não dito e seguir adiante.
A certa altura do documentário, David reproduz um filme caseiro. É o aniversário de uma criança da família. O pai está lá, batendo palmas e quase sorrindo. Mas o pai não está lá. O pai escreveria no diário depois: “Como não podemos esquecer, somos todos atores”. Ele também poderia ter dito: “Como não podemos lembrar, somos todos atores”. Joseph Fisher poderia ter sido o “six million and one”, mas não foi. E, como tantos sobreviventes, é consumido pela culpa. “Por que eu?”, é a indagação incessante que faz a si mesmo.
Só no parapeito da morte o pai sente-se pronto para dar um lugar para o horror. Pela memória do único texto que precisa interpretar, o pai finalmente pode deixar de atuar. O pai então escreve o diário – e transforma o monstro que o come por dentro em palavra escrita. Mas, para que sua sobrevivência ao Holocausto tenha sido não uma morte, mas uma vida, ele precisa endereçar essa memória. Pois a carta que não chega ao seu destino para ser lida pelo outro não é uma carta, mas um esquecimento sem lembrança. E é assim que o diário chega às mãos de David.
Entre todos os irmãos, David é o único capaz de compreender que precisam percorrer o caminho do pai como filhos. David entende que o pai escreve o diário não apenas para poder esquecer, mas para que os filhos tenham uma chance de lembrar. Se, para o pai, foi um diário, caberia aos filhos encontrar a sua forma de materializar e nomear o inominável. Como disse recentemente o psicanalista Paulo Endo, em uma banca de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, numa frase que é para todos nós: “Em vez de ser perseguido pelo trauma, é preciso perseguir o trauma”. É o que David e seus irmãos fazem ao seguir as pegadas do pai.
Para arrancar os pés do passado e avançar rumo ao futuro é preciso antes fazer marca. Essa é a beleza do humano que, se é capaz de produzir tanto horror, também é capaz de criar beleza a partir do horror. O filme exibido hoje nos cinemas do mundo é a marca que permitiu a David e seus irmãos seguirem adiante levando o legado do pai como vida – e não mais como morte. “Six million and one” é uma bela cicatriz.
(Publicado na Revista Época em 21/11/2011 )