Escritor de rua confronta nossa crença de que há um lugar para onde voltar
Tião Nicomedes é escritor. E, por ser um homem sem teto fixo, inventou-se para ele o título de escritor de rua. Porque toda identidade dele se dá no lado de fora das portas, numa vivência entre aqueles que não apenas são destituídos de casa, como perderam os laços com família, emprego, contas a pagar, refeições com horários, finais de semana de lazer, tudo aquilo que constitui a identidade do homem inserido na sociedade, o homem bem ajustado. Tião estreia na próxima segunda-feira, num circuito de universidades e espaços alternativos, um monólogo que nomeou de “O homem sem país”. Logo abaixo, no cartaz do espetáculo, feito por ele em computadores de lan houses do centro, ele diz: “O que é cidade de origem pra quem não tem mais para onde ir?”.
É profunda a indagação de Tião Nicomedes. Perguntei a ele de onde veio essa pergunta. Tião responde que fica incomodado com programas para moradores de rua, assim como discursos de autoridades, que defendem a necessidade de devolver os sem-teto ao lugar de onde vieram. Mas, diz Tião, como voltar se não há mais nada lá?
Para quem não conhece Tião, é preciso contar da literalidade de sua vida. Em 2003, ele era um autônomo instalando um luminoso numa loja, em São Paulo. Desequilibrou-se e despencou lá de cima. Inconsciente, foi arrastado até a esquina pelo dono do comércio e por colegas de trabalho, para simular um atropelamento. Assim, o proprietário não teria responsabilidade pelas consequências da queda. Quando despertou, num leito de hospital público, Tião estava só. Não uma solidão casual, mas tão só quanto alguém pode estar na vida. Não era apenas uma queda, mas a queda. Essa foi a primeira literalidade.
Ninguém apareceu para resgatá-lo. Nem amigos, nem familiares, nem a mulher com quem vivia. Sua solidão diante do mundo era tão abissal quanto a situação existencial de cada um de nós, mas no caso dele tinha uma concretude que a nossa não tem. Essa foi a segunda literalidade. Tião chegou mesmo a perguntar à enfermeira se não estava morto, ao não reconhecer um único olhar onde pudesse ver refletida a certeza de existir.
Quando deixou o hospital, Tião estava na rua. Alcançou a beira do viaduto pensando em suicídio. Mas até para se matar era preciso subir um degrau, o da ponte, e Tião estava ao rés do chão. Literalmente. Só conseguiu escalar essa queda quando descobriu que para se reinscrever na vida precisava apenas de uma caneta. Tião começou a escrever furiosamente nos albergues, nas ruas, em pensões baratas sobre aquele que chama de “segundo mundo”. O que é o segundo mundo, pergunto a Tião? É o mundo que está aí, mas ninguém quer ver, ele responde.
Há um ano Tião tem percorrido as ruas em busca dos sem-país, genial conceito criado por ele para nomear aqueles que sabem que não têm para onde voltar. Homens e mulheres em movimento, mas que vivem nas fronteiras das grandes, das médias e das pequenas cidades, sem conseguir entrar. Ao alcançar a divisa, são despachados para fora pelo aparato repressivo de prefeitos que não os querem “poluindo” suas ruas. Ou são retirados do centro das grandes cidades com justificativas humanitárias, despachados para outras margens para não desvalorizar o cartão postal ou impedir “revitalizações do centro” que não contemplam suas vidas. A busca de Tião para entender o que é não acabou, nem deve terminar nunca, mas um dia ele acordou tomado por uma inspiração doída e escreveu o monólogo num rompante.
Apresentado Tião Nicomedes, podemos pensar sobre o que ele está dizendo. Porque acredito que ele diz algo de muito fundo não apenas para moradores de rua, mas para todos nós, sempre mais semelhantes do que diferentes. Tenho a honra de conhecer Tião há alguns anos e sempre fiquei intrigada com uma afirmação sua, que só agora chego a entender. “Estou sempre em movimento”, ele diz. Nós todos estamos sempre em movimento. Apenas – e não é pouco – que no caso dele é literal.
No começo dessa viagem em busca dos sem país – em busca de si mesmo – a primeira parada de Tião foi sua cidade de origem. Apenas para descobrir que o passado não estava lá, nem mesmo fisicamente. Que tudo, como também ele, estava transformado. Não havia volta, não havia para onde voltar. Nunca há. Essa certeza tão feroz – e tão humana – foi seu ponto de partida. E então Tião se pôs em movimento, voltando sempre para o centro de São Paulo, de um jeito ou outro, e com as mais variadas justificativas, sua casa sem casa. Voltando para poder partir.
Estamos, todos nós, de alguma forma, tentando voltar. Quem não tem nostalgia de um passado que quando era presente nem foi tão bom assim? Quem não acha que o antes era melhor? Já vi gente que viveu guerras, prisões, torturas acreditar não que isso era bom, mas querendo resgatar pelo menos alguns valores perdidos dessa época que se foi, desse ser que se foi neles também.
Não estão tantos de nós afirmando o tempo todo uma identidade fixa, seja ela uma nacionalidade, uma opção sexual, uma escolha política ou mesmo uma marca de cerveja? Não é sobre essa nossa busca de identidade fixa que se fundam todos os apelos da publicidade, eu uso tal marca, eu prefiro isso, eu escolho aquilo? As denominações religiosas teriam alguma chance se não dessem certezas sobre de onde vim, para onde vou?(E a ciência não desagrada a tantos porque a única resposta que pode dar para a primeira pergunta seria vim do caos e do acaso, e para a segunda, vou para o nada e para a incerteza?) Quem sou eu não é a grande pergunta sem resposta que nos fazemos o tempo todo?
O que Tião me provoca com suas inquietações, a mim que nunca vivi literalmente nas ruas nem na literalidade de uma solidão absoluta, é que também eu não tenho, simbolicamente, para onde voltar. Me pus a pensar então no “estar sempre em movimento”, sua afirmação mais enigmática. E quando começamos a buscar, em geral encontramos aqui e ali pistas que em outro contexto não seriam percebidas.
Abri, na semana passada, a edição de maio da Revista da Cultura, publicação gratuita da rede de livrarias, e ancorei numa entrevista com o escritor Bernardo Carvalho. Ao responder uma das perguntas do jornalista Sérgio Miguez, ele diz: “Tem uns nós que são bem centrais em minhas obras. Um deles é a identidade, que pode ser a nacionalidade, a orientação sexual ou aquela coisa de o indivíduo acreditar no que é, no que construiu. Mas, para demonstrar que nesse negócio tinha alguma coisa errada, que existe uma veracidade por trás e essas identidades são uma espécie de artifício para sobreviver, usei as viagens e os deslocamentos para ajudar no encontro da tal verdade, que não está em um lugar fixo, numa nacionalidade, no ‘eu sou gay’. A verdade está em algo móvel, que não é sedentário e está sempre em formação ou desconstrução. As viagens servem como a imagem dessa obsessão pela busca da verdade, que só pode estar em movimento”.
Na mesma noite, li O Africano (CosacNaify), de Le Clézio, prêmio nobel de literatura de 2008. É um livro sobre deslocamentos, sobre a “história em constante processo de reescrita, a ser todo o tempo redecifrada”. Vejam a beleza deste parágrafo: “É à África que quero incessantemente voltar, à minha memória de criança. À fonte de meus sentimentos e de minhas determinações. O mundo muda, é certo, e aquele que lá está, em pé no meio do alto capinzal da planície, no sopro quente do vento que traz os cheiros da savana, o rumor penetrante da floresta, sentindo nos lábios a umidade das nuvens e do céu, aquele lá está tão longe de mim que não há história ou viagem que me permita alcançá-lo”.
De novo, lá estava o movimento. Parei de ler e passei a detectar os deslocamentos da minha vida, alcancei o sentido de uma frase que sempre repito, quando me perguntam se não pretendo voltar a uma cidade, a um emprego, a um tema. Eu digo: “eu não gosto de voltar”. Porque toda volta é uma ilusão. Não há como voltar, o que pode existir é uma outra história, com um outro eu, com um outro que também já é outro. Não existe reencontro, só encontro. Não existe volta, só chegada. De certo modo, somos sempre estrangeiros ao nosso ontem.
Como Tião Nicomedes descobriu, só existe retorno pela viagem poética, pela escrita. Pela arte. Em sua literalidade feroz, ele é o homem sempre em movimento, ao mesmo tempo concreto e simbólico. E nos ensina que na vida humana não há nada onde se fixar, nem mesmo uma cidade de origem. Não há resposta definitiva para nenhuma grande questão existencial, nem mesmo para as pequenas perguntas. Não existem as certezas que tanto queremos, tudo é incerto, volátil. O que ele reivindica, com seu O Homem sem país é o direito ao movimento, que políticas públicas – algumas escritas, outras inscritas apenas na prática – tentam roubar dos chamados moradores de rua. Não existe para onde voltar, o que existe é o movimento. E se arrancar do homem o movimento, o que deixará de existir é o humano que nos habita.
(Publicado na Revista Época em 18/05/2009)