Vizinhos de praia

Como eles podem transformar as férias da gente num inferno

A praia costumava ficar num lugar que ninguém se interessava em conhecer. Chegamos lá, 25 anos atrás, depois de nos perder um pouco, graças à casa emprestada de um tio que fazia uns negócios meio malucos e acabava com imóveis em lugares estranhos. A tal praia da qual ninguém tinha ouvido falar era composta por um mercadinho onde comprávamos com caderneta, um restaurante e meia dúzia de casas. Dava para passar o veraneio de pés descalços e dormir de janela aberta que nada acontecia. Praia de marzão aberto, como é a característica do mal-falado litoral gaúcho, ela não tinha nenhuma beleza que não fosse essa atmosfera de lugar nenhum. Mais tarde eu conheci praias paradisíacas no Caribe e no Mediterrâneo, mas em nenhuma fui tão feliz quanto em Ouriço do Mar.

A praia foi crescendo, ganhou um pontinho no mapa, mas meus pais nunca desistiram dela. Agora eles alugam uma casa, sempre a mesma, desde que a antiga foi demolida mais pelos cupins que pelo pedreiro. E, assim, lá estava eu, de volta à melhor praia do mundo, depois de uma hora e meia de avião, quatro horas de espera, duas horas e meia de ônibus e meia hora de carro. Cheguei na tarde de 24 de dezembro, para passar as festas com a família, única época do ano em que todos se encontram, cada um vindo de um canto. Em minutos, eu já estava adaptada, com a trajetória dos próximos dias delimitada por um triângulo perfeito entre a rede, a geladeira e a cama.

Quando os festejos natalinos terminaram, fui dormir quase ronronando. Divido o quarto da frente com meu irmão do meio. É uma delícia ter 43 anos e dividir o quarto com o irmão de 50, sabendo que os pais estão no quarto dos fundos. Regrido uns 30 anos. E quase digo: “Boa noite, John Boy”. E quase escuto: “Boa noite, Mary Ellen”. (Se você tem menos de 40 e não assistiu aos “The Waltons”, nem tente entender.)

Estávamos nós, sonhando com os doces da minha mãe, por volta de 1h da manhã, quando meu coração saltou. Achei que estava enfartando. Então o coração pulou de novo. E continuou pulando forte num ritmo sincopado. Depois de alguns segundos, a verdade me atingiu com a força de uma revelação mística. Sim, eles chegaram. Os novos vizinhos do lado esquerdo.

De repente, nossa casa tinha virado um baile funk. Eu e meu irmão tentamos ignorar. Lançamos mão de nossos poderes de iogues. Por meia hora tentamos fingir que aquilo não estava acontecendo, apesar de o coração vir até a boca, voltar ao peito, vir à boca, voltar ao peito. Tentei me concentrar na respiração. Ar que entra, ar que sai, ódio que entra, ódio que não sai, ôps. Então, a letra, que até então parecia composta por hieróglifos de uma língua antiga, sânscrito talvez, se revelou:

“Vai tomar no cu, bem no meio do teu cu”.

Era o limite. Saltei da cama numa agilidade só vista em tempos imemoriais. Meu irmão me seguiu, minha filha deixou o quarto do meio. Marchamos até a cerca. Lá estava um carro com o porta-malas aberto e gigantescas caixas de som. Na minha opinião, deveria ser obrigatório licença de porte de arma para essas monstruosidades. Com investigação rigorosa do gosto musical e da integridade dos tímpanos do candidato.

Quando eles baixaram alguns milhões de decibéis para nos ouvir, meu irmão disse, calmo como um homem da diplomacia afegã: “Vocês têm duas alternativas. Ou param agora ou eu chamo a polícia”. Eu emendei um discurso sobre o fato de eles não serem os únicos seres sobre o planeta naquela noite.

Eles sabiam disso. Só tinham certeza de que eram os mais importantes. Não eram exatamente adolescentes. Eram adultos e havia até uma criança de menos de dois anos com eles. Com quatro, ela com certeza estará surda. Estava sempre tentando fugir para o nosso pátio.

Marchamos de volta. E não é que eles pararam? Para mim, foi mais incrível do que se Papai Noel tivesse aterrissado com duas renas listradas bem no meio do quintal. Finalmente um milagre natalino.

Tive fé cedo demais. No dia seguinte, eles recomeçaram. Para que fique bem entendido. Por volta de 16h do dia de Natal ninguém se ouvia dentro de casa. Se fosse imprescindível, berrávamos no ouvido um do outro. Quando percebi, a situação tinha chegado ao nível de estarmos assistindo a um filme na TV, no mudo, só com a legenda. O som era: “Bota na bundinha, bem no meio da bundinha”. Incrível essa fixação em botar e tirar coisas da região anal. Tentei não me aprofundar muito. Letras complexas demais poderiam atrapalhar meu descanso.

Liguei para o 190. E não é que a polícia veio? Fiquei muito grata à briosa PM do Rio Grande do Sul. Imagino o pé no saco que deve ser estar de plantão e ter de vir explicar para gente grande que não dá para botar música no volume máximo, na frente da casa e com caixas de som gigantes. Como se explica o que todo mundo já sabe? Como se lida com essa espécie humana?

Meus vizinhos se sentiram injustiçados. Nós não sabíamos nos divertir. Éramos uns chatos. “Vão para o meio do mato!”, berravam. Procuraram um outro jeito de nos atormentar. E, claro, acharam. Ligavam, ao mesmo tempo, os dois carros, obviamente com o cano de descarga aberto, um buggy e a moto. E aceleravam.

Tentei manter uma compostura de elfa. Mas era difícil, já que o hit do verão, pelo menos em Ouriço do Mar, já tinha dissolvido uma parte do meu cérebro. “Eu sou sua mulher e você é o meu homem”. O que é um verso de Chico Buarque como “na desordem do armário embutido meu paletó enlaça o teu vestido e meu sapato ainda pisa no teu” perto da elegância deste refrão? Quantas horas foram gastas para conceber este primor da língua de Camões? Não tenho nada a ver ou dizer sobre o gosto musical dos outros, desde que não me obriguem a compartilhá-lo.

No dia seguinte, começaram a explodir foguetes por todo o canto, inclusive dentro de casa. A vizinha da frente, grávida depois de anos de tentativas, começou a berrar: “Vou perder meu bebê! Eu não posso levar susto!”. Eles concluíram que ela também não sabia se divertir.

Tentei observá-los com lentes antropológicas. Da minha rede, fiz cara de conteúdo. Descobri que eles não se tratavam pelos nomes. Todos os homens eram chamados de “merda”. E todas as mulheres de “mocreia”. Interessante. Meu irmão, até então sempre muito sensato, deu para defender uma teoria antiga, mas que fez pouco sucesso em seu tempo, de que os macacos evoluíram dos homens. De repente, começou a fazer muito sentido.

Na véspera do Ano-Novo chegou o vizinho da direita. Esperávamos reforços para nosso movimento de resistência. Descobrimos que estávamos sós. Este vizinho é uma boa pessoa, como diz a minha mãe. Mas tem obsessão por cortador de grama. Ele corta grama o dia inteiro. Quando termina a grama da casa dele, começa a cortar a grama dos vizinhos. Quando a vizinhança toda se transforma num campo de golfe, ele é tomado por ímpetos de cidadania e passa a aparar os canteiros públicos. Uma hora dessas vai entrar mar adentro e procurar grama entre os cangurus da Austrália.

Já tive pesadelos com o cortador de grama do vizinho. Quando acaba tudo, a grama dele já tem uns cinco centímetros e o ciclo recomeça. Nesse veraneio, ele descobriu uma cobra coral no pátio. Agora, quando não está cortando grama, caça cobra com um galão de gasolina na mão. Ele quer incinerar o bicho. Aqui em casa, torcemos pela cobra.

Duas horas depois chegou o vizinho da frente. Ele e o vizinho da direita são muito próximos. Conversam o dia inteiro, mas sem sair de casa. É um método interessantíssimo. Cada um coloca uma cadeira de praia na varanda, respectiva cuia de chimarrão na mão, e gritam de um lado a outro da rua. A rua tem duas mãos e um canteiro no meio. Nenhum deles tem segredos, nem entre eles nem num raio de 200 metros. Eu gostaria que eles tivessem segredos.

O vizinho da frente traz a família e sete poodles. Melhorou. Já foram doze. Quem contou foi meu pai. Eu gosto de cachorros, mas estes sofrem de algo que os psiquiatras, sempre afiados na arte de criar uma nova patologia, poderiam chamar de síndrome das línguas inquietas. Eles latem o dia inteiro. E a noite também. Se passa uma formiga na calçada, eles latem. Em meus devaneios, eu já os envenenei com todo o tipo de droga fatal. Ninguém da vizinhança reclama porque o vizinho é médico e, quando alguém se aperta, bate na porta dele. O doutor atende a todos alegremente, ao som dos uivos de seus melhores amigos. O doente não ouve o que ele diz, mas lê os lábios. Em geral, fora um ou outro mal-entendido, acaba comprando o remédio certo.

Neste momento, estou encurralada. Escrevo esta coluna no quarto dos fundos. Perdemos. Não sei quem são estas pessoas. Nem imagino o que dizem para si mesmas. Seja o que for, não conseguiriam ouvir. Só sei que elas têm absoluta indiferença pela vida do outro, por nós. E agora nos esgueiramos pela casa como párias.

Os vizinhos da esquerda nos provocam com um funk que diz: “Abaixa o som, abaixa o som. Olha os hômi.” Seguido pelo barulho de uma sirene de polícia. O da direita corta uma grama imaginária. Na frente, os cachorros se esgoelam. Provavelmente, uma joaninha está passando pelo portão.

Tentem imaginar a combinação de um funk carioca com o som de um cortador de grama, somado a sete poodles se esgoelando. Pronto, vocês entenderam a minha vida.

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Os fatos aqui narrados são verídicos. A única invenção é o nome da praia. Medo de represálias. Nossa única certeza agora é que sempre pode piorar muito.

Como estou de férias, esta coluna vai pular uma segunda-feira. Volta em 18 de janeiro. Se nada acontecer, claro. Torçam por mim. Se eu desaparecer, é porque fui presa metralhando uma caixa de som gigante ou numa luta corporal com o cortador de grama. Se lerem a seguinte manchete de jornal – “Serial killer de poodles estripa e faz linguiça” -, confesso, sou eu.

Vou tentar resistir. Afinal, a bucólica São Paulo me espera. Juro. Não há lugar mais sossegado e silencioso que o sofá azul lá de casa.

(Publicado na Revista Época em 04/01/2010)