Ao lado do mais novo cartão-postal de São Paulo Marcão e sua família já não têm mais vizinhos, mas ainda defendem seu lar
Marcelo Min (fotos) e Eliane Brum (texto)
José Marcos Carneiro Santana e sua família habitam um mundo que não existe mais. Ele fez sua casa quando cartões-postais de uma São Paulo monumental, como a ponte estaiada e a Avenida Berrini, nem existiam, quando tudo era lama e ninguém queria aquele pedaço de charco. José Marcos e os tantos como ele tiveram de querer. O Jardim Edite, um amontoado de barracos colados uns aos outros, só tinha flores no nome. Desapareceu no fim de maio, levando com ele a vida cotidiana de mais de 800 famílias. Sobrou José Marcos, sua mulher e seis filhos, resistindo numa casa que ele, muito religioso, pintou da cor do céu. No tabuleiro do mercado imobiliário, só resta ele a derrubar, o último peão.
Está lá porque entrou com uma ação de usucapião e obteve uma certidão, registrada em cartório, que lhe garante ficar no local enquanto não sai a sentença definitiva. Quando a empreiteira mandou que pegasse suas trouxas e fosse embora, José Marcos colou a certidão na parede. Todos foram varridos dali, menos ele. Sobrou ainda outra casa, cujo dono – de classe média – afirma ter escritura e não estar em área pública. Isso também a Justiça terá de decidir.
José Marcos salvou seu canto de mundo, por enquanto, ao se especializar em vender pipoca perto de faculdades de Direito. Ele conta que gosta de “um pessoal mais conceituoso”. “Entrei no ramo da pipoca lá na USP, no Largo São Francisco”, diz. Depois, estabeleceu-se no campus de outra universidade, a Unip, no bairro de Santo Amaro. Há uns 20 anos tem lá um “imperiozinho bem formado”. Nele, é conhecido como Marcão da Pipoca. Quando os rumores da retirada da favela subiram de tom, José Marcos conversou com seus clientes, estudantes de Direito, enquanto preparava sua especialidade com provolone. “Você tem a posse passiva”, os quase “doutores” disseram unânimes. José Marcos contratou por lá mesmo um advogado e pagou em prestações espichadas.
Penetrar no mundo aos pedaços de José Marcos e de sua família produz estranhamento. É uma grande cova fresca, onde a terra se mistura com fragmentos da vida que existia ali. Uma janela, um sapato velho, uma flor de plástico. Da ponte estaiada, uma montanha de terra encobre a visão do que parece um cenário de guerra. A casa azul e seu mundo em dissolução ficam ocultos. Miguel Isaías, neto de José Marcos, foi gerado ali. O barraco de Késia, a mãe, foi posto abaixo. Ela caiu entre os escombros quando foi buscar a água que cortaram e machucou a barriga de quase nove meses. Foi levada ao hospital para que o filho nascesse e, agora, o amamenta em meio à devastação.
Atrás do monte de terra, morreu outro morador, Manezinho, quando um muro desabou sobre ele, em meados de maio. Manezinho estava sentado diante do barraco de onde jurou “só sair morto”, quando avistou uma calha de latão. Ao alcançá-la, porque vivia de juntar sucata, ruínas inseguras caíram sobre ele. Suas últimas palavras foram: “Eu pedi”. A empreiteira fez um enterro “com um caixão bonito”, nas palavras de José Marcos. Diziam que Manezinho bebia além da conta, e ninguém parece ter ligado muito. Ele se tornou vítima de uma guerra invisível.
Depois de uma disputa judicial, o prefeito Gilberto Kassab (DEM) prometeu construir ali um conjunto habitacional para 240 das 842 famílias do Jardim Edite. Os moradores poderiam escolher entre receber R$ 8 mil para comprar uma casa noutro lugar, um auxílio de R$ 500 por dez meses de aluguel ou ser encaminhados a outra unidade. O valor médio do metro quadrado da região é de R$ 4 mil, para apartamentos residenciais, segundo a Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio (Embraesp). É uma área em expansão, com valorização crescente. Ao longo das avenidas alinham-se alguns dos mais caros hotéis da cidade e prédios de luxo ocupados por grandes empresas. A única intersecção do Jardim Edite com a vizinhança chique era o tráfico de drogas. Carrões BMW, Volvo ou Citroën estacionavam na favela com os faróis apagados, para desgosto da maioria dos moradores.
José Marcos resiste porque a pipoca fez uma ponte que lhe permitiu alcançar a Justiça. Ele não acredita que os moradores da favela poderão voltar. Chegou ali nos anos 70, vindo de Minas Gerais com o sonho de gravar um “long-play” de samba. A vida revirou, e sua música virou o estalo da pipoca na panela. Ali conheceu sua mulher, virou evangélico e teve seis filhos. “Para mim, essa casa é muito linda”, diz. “Se for obrigado a vender, eu vendo, mas pelo valor correto.”
A família sente falta dos vizinhos, mas gosta do silêncio. Agora não há mais forró à noite, não há mais nada. Só eles e seu estranho mundo, uma miragem entre a ponte estaiada e os prédios da Berrini. Há um filme de Frank Capra chamado Do mundo nada se leva (1938). Nele, uma excêntrica família decide resistir em sua casa ao avanço de um grande empreendimento imobiliário. O filme, que ganhou o Oscar, tem final feliz. José Marcos e sua família também lutam pelo seu happy end na casa azul. Mas, do seu mundo, quase tudo já foi levado.
(Publicado na Revista Época em 18/06/2009)